Cartas a possíveis amigos

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Consultório da loucura #8

antonioxerxenesky.substack.com

Consultório da loucura #8

No qual o autor responde sobre gerações literárias, a suposta glória de "permanecer" e outros quetais.

Antônio Xerxenesky
Oct 19, 2022
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Consultório da loucura #8

antonioxerxenesky.substack.com

P: Tu te vê parte de uma geração de escritores? O que constitui uma geração para você?

Não.

É engraçado isso, recortes sincrônicos são muito difíceis de serem feitos. Passada e encerrada a Geração 90, a gente consegue traçar linhas de força, elencar nomes etc. Mas isso é feito a posteriori e esse trabalho (não podemos esquecer) é também um esforço de exclusão, de tirar tudo que não se encaixa naquilo que (cegamente?) definimos como características essenciais da Geração 90.

Se críticos daqui a uma década fizeram o recorte da geração 2010s (não saberia como chamá-la), eu dificilmente me enquadrarei em qualquer corpus. Nas últimas duas décadas, a literatura brasileira se abriu para discursos contrahegemônicos e grandes obras surgiram daí; eu sou apenas um sulista imbecil papagaiando Pynchon e Bolaño. Quem está próximo de mim? O Samir Machado pegou aquilo que eu fazia nos meus primeiros romances (F e Areia nos dentes) e bolou algo muito melhor, mais amplo, de maiores repercussões estético-políticas. Ainda assim, o Samir seria colocado ao lado de quem para constituir uma Geração 2010? Itamar, Bei, Tenório, Carla Madeira? Não, o que ele faz é totalmente diferente, como se escrevesse em húngaro.

O que acho que irá ocorrer é o mesmo que já aconteceu no passado: um nome se torna imenso e puxa toda uma constelação de autores. Itamar Vieira é o novo Jorge Amado em termos de impacto, logo as constelações generacionais desenhadas pelos críticos terão que se organizar ao redor da obra dele.

P: Autores BR tem que ser abraçados pelo sistema educacional para sobreviverem ao tempo?

Colei essa pergunta logo embaixo porque dialoga com a de cima. Quando lemos sobre “a geração de 30” na escola, é porque houve um esforço sistematizador (de seleção e, por conseguinte, exclusão do que não se encaixa nas linhas de forças escolhidas como definidoras). Sim, para sobreviver ao tempo provavelmente você precisa virar leitura obrigatória de vestibular.

Mas por que sobreviver ao tempo? Sejamos esquecidos. Há muita alegria, beleza, até mesmo júbilo, em desaparecer.

As maneiras de permanecer que me cabem e com as quais eu me importo: os alunos que ajudei, os livros que editei/traduzi e ajudaram a moldar, de alguma forma, o universo intelectual brasileiro e, é claro, o filho lindo que estou educando para que seja uma pessoa melhor do que eu fui, ou ao menos para que não cometa os mesmos erros que eu.

P: Há espaço para metaliteratura e autoficção na cena literária contemporânea brasileira?

Pô, tem espaço até demais para autoficção. Queria que tivesse menos autoficção e mais ficção científica. Mas isso sou eu. Metaliteratura é outra história. Está fora de moda no mundo todo. Sempre haverá espaço naquele nicho de livros esquisitos por editoras pequenas que 20 pessoas amam intensamente (gosto deste nicho).

P: Assinei essa newsletter pra fazer uma única pergunta: tendo ficado órfão após a leitura e a releitura dos calhamaços de Roberto Bolano, quais outros livros você indica e que podem causar a mesma sensação (que é uma sensação de derrota, de desesperança, mas ao mesmo tempo de êxtase e satisfação e sensação de que tudo que importa na literatura está ali)? Tentei o "O homem sem qualidades", mas não consegui avançar, prefiro obras mais contemporâneas.

Ah, meu camarada, se fosse fácil. Lembro quando descobri Thomas Pynchon, enlouqueci e comecei a fazer buscas no Google do tipo “writers like Thomas Pynchon”. Não preciso dizer que nunca encontrei nada parecido, mas acabei me deparando com outros maravilhosos — Gaddis, John Barth, Barthelme…

Ao terminar 2666, todos sentimos a maior orfandade do mundo. Não à toa é meu livro favorito. Há algo ali que é irreproduzível, que está no DNA de Bolaño, aquelas frases acessíveis, luminosas, quase-místicas. Me falaram muito do último romanção do Zambra, Poeta chileno, como um livro que tenta reproduzir isso até certo ponto.

Mas essa sensação de assombro vem apenas da leitura de romances enciclopédicos e monstruosos, livros que tentam ser maiores que o mundo & obviamente fracassam. Você já leu Pynchon? Pois: O arco-íris da gravidade, li 3 vezes na vida, e em cada leitura foi um livro diferente. Dei um curso no começo do ano sobre ele, 8 encontros. Começamos com 16 alunos e no final acho que sobraram 6, sendo que metade não conseguiu terminar o livro. Mas há algo extremamente recompensador ali, se você de fato mergulhar sem medo & com persistência & teimosia. Sobrevivendo até passar a parte do Kenosha Kid, tudo anda.

Para esse curso, li o Gravity’s Rainbow Companion, que rastreia página a página cada referência, escutei os podcasts de leitura coletiva (Pynchon in Public) e fiz outras buscas por conta própria (eu ia dar aula, logo precisava saber mais que meus alunos para ter o que ensinar). E o livro, assim como 2666, mostrou-se inesgotável: os alunos descobriram milhares de leituras & interpretações que passaram batidas por mim, e mesmo amparado por tanto material extra, vi que é um livro que transborda e nunca será contido.

Moby-Dick é outro livro dessa estirpe. Ulysses. The Recognitions. Há muitos universos por onde se perder, a questão é que sempre há uma barreira de legibilidade, um teste de resistência, que 2666 não possui, pois te fisga em poucas páginas (apenas para te esmagar na parte 4).

P: Como está lidando com esse segundo turno tóxico?

Olha, mal e sofrendo como todos, mas pelo menos não estou vendo os debates. Gente, para que assistir a debates? Vai mudar o voto de vocês? O meu não vai. O de quase ninguém vai, só serve para recortarem trechos descontextualizados e usarem para provocar celeumas online. Ficar acompanhando obsessivamente cada debate é forma sofisticada de autoflagelação. Quer sofrer? Vai em frente, passe o dia todo nas redes doomscrolling (alguém precisa traduzir essa expressão). Eu aprendi uma meia dúzia de mecanismos para preservar algum mínimo de sanidade mental e eles incluem, também, limitar o tempo de uso de Instagram (tem uma função no app que te lembra de desligar aquele lixo).

P: O que achou dos ativistas que jogaram sopa de tomate num quadro do Van Gogh como protesto?

Uma das coisas mais burras que já vi na vida, mas como toda atitude profundamente estúpida, tem algo de romântico & pelo qual se sente um carinho difuso & inconfessável.

P: Qual teu primeiro parágrafo favorito da literatura?

(BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Trad.: Eduardo Brandão).


Olá: posto essas respostas com o título Consultório da Loucura em ritmo irregular. Há quilos de textos apenas para assinantes pagos no arquivo dessa news, muitos respondendo coisas que sempre voltam na caixinha de perguntas. Cogite apoiar ($$) o projeto e explorar tudo o que já foi solto com um cadeadinho.

Ah: logo (ainda nesta semana) começarei a fazer a experiência mística-literária de ir comentando as leituras das parashiot (porções dos 5 primeiros livros bíblicos, algo que é feito mundialmente na mesma ordem). Se você acha tudo isso uma imensa besteira, perda de tempo, é simples: basta ignorar qualquer news que chegar no seu correio com a primeira palavra Parashah. Continuarei escrevendo com regularidade sobre literatura e respondendo perguntas no mesmo ritmo de sempre.

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Consultório da loucura #8

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4 Comments
Thiago Ambrósio Lage
Writes Mercúrio em Peixes
Oct 25, 2022

Amei este conceito-imagem de constelação de autores. Como penso visualmente, agora muitas coisas fizeram mais sentido pra mim, inclusive sobre as arbitrariedades nas escolhas quem quem-vai-com-quem.

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Robson
Writes Robson’s Substack
Oct 19, 2022

Os ativistas afirmaram que sabiam que o quadro estava protegido por um vidro e que nenhum dano seria causado. Eles previram a repercussão e planejaram para que ficasse evidente que as pessoas se importam mais com um dano imaginário a um quadro do que com um dano real à nossa capacidade de sobrevivência.

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1 reply by Antônio Xerxenesky
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