O primeiro post
Na qual o autor explica o título da newsletter e reflete sobre o que o perturba ao escovar os dentes
ESTE TEXTO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO EM DEZEMBRO DE 2020, NA PRIMEIRA TENTATIVA DE FAZER UMA NEWSLETTER DECOLAR.
Há muitos anos sonho em ter uma coluna do jornal; não rolou, então tentei por todos os meios ter uma coluna sobre videogame. Também não deu. Então por que não uma newsletter? Afinal, não dá grana e eu também não tenho tempo para nada. Parece lógico.
Agora, fora de brincadeira, desde o ressurgimento, newsletters sempre me pareceram modos menos tóxicos de existir em redes sociais e eu adoro ler as inúmeras que assino. Vou usar esse espaço para pequenos ensaios pessoais que podem não interessar a mais do que 5 viv’almas e tudo bem.
Peter Sloterdijk, parafraseando outro sujeito, diz que os livros são cartas que escrevíamos a amigos, apenas mais longas. Desde o surgimento da filosofia e das chamadas humanidades, tudo o que fizeram foi escrever essas cartas, que poderiam ser lidas séculos depois, por civilizações diferentes, que receberiam essas palavras e as tomariam para si.
O ápice do humanismo, argumenta Sloterdijk, foi de 1789 a 1945, quando as humanidades ostentavam a vaidade de serem os pilares da civilização ocidental, de terem domado as feras, de terem domesticado a humanidade, criando um zoológico, ou um parque humano.
Mas, como todos nós sabemos, o século XX foi uma sequência de frustrações; primeiro a Primeira Guerra, onde todos embarcaram animados e saíram mutilados; depois, o maior baque de todos, i.e., a Segunda Guerra e a Shoah.
George Steiner famosamente disse que uma pessoa podia muito bem ler Kant e poemas de Rilke de manhã, tocar um Mozart gostoso no piano da sala, e à tarde ir trabalhar como soldado nos campos de extermínio.
O nazifascismo não surgiu de uma cultura iletrada, mas do âmago da Europa ilustrada e intelectual, com seu Mozart e seu Rilke, e não foi um apagão da razão, mas a instrumentalização da razão para violência sistematizada, que se valia de argumentos eugênicos para propor genocídio (e ainda assim receber apoio majoritário de mais de 90% da população).
Então, o que fazer depois que sabemos que essas cartas do passado, os poemas de Rilke, a música de Mozart, e a filosofia da ciência moderna de Descartes em diante, não apenas foram incapazes de impedir a barbárie, como foram terreno fértil para o autoritarismo, o racismo, a violência étnica etc. etc. etc.?
As cartas para os amigos não servem mais de domesticação de seres humanos embrutecidos, argumenta Sloterdijk, e os intelectuais no máximo podem atuar como arquivistas de um passado, compilando essas cartas para amigos.
E todos nós podemos dizer: a literatura não tem mais relevância na sociedade, em parte porque é lida por uma fração pífia de seres humanos, em parte porque mesma a mais engajada das ficções é impotente diante das forças sempre renovadas dos protofascistas, criptofascistas, fascistas escancarados etc.
“Dois milênios e meio depois de Platão, parece que não só estamos sem deuses, mas também sem sábios. Fomos deixados a sós com nossa escassa sabedoria (...) Ao invés de sábios, restaram escritos de brilho opaco e obscuridade crescente. Eles continuam ali, em edições mais ou menos acessíveis: ainda podemos ler os livros, se ao menos soubéssemos o por que de fazer isso. Seu destino é ficar em estantes silenciosas, como as cartas acumuladas de uma caixa de correspondência que deixou de ser recolhida: cópias fiéis ou enganosas de um conhecimento no qual já não conseguimos mais acreditar, enviadas por autores que já não sabemos se podem ser nossos amigos.” (Sloterdijk)
Podemos confiar na literatura, nas humanidades, nas artes? O que fazer depois de descobrir que a literatura foi irreversivelmente manchada? E não me refiro às pessoas físicas dos autores, de JL Borges amigo de Pinochet e Videla, de Virginia Woolf e Hemingway e suas tiradas antissemitas, para não mencionar os nazistas assumidos, Céline e Hamsun. Falo da vida própria que os textos ganham e da manipulação que podem sofrer.
Assistindo ao documentário sobre terraplanistas da Netflix, eis que o líder do grupo decide mostrar sua principal inspiração literária: 1984, de George Orwell (que acabei de traduzir). O livro de Orwell já serviu de discurso para: atacar o comunismo, atacar o nazismo, atacar a vida contemporânea, atacar a vigilância capitalista, e agora é combustível para teóricos da conspiração, que acreditam que o mundo onde vivemos é uma mentira e a sociedade inteira se une para nos fazer crer que 2+2=5, ou seja, que a Terra é esférica e que giramos ao redor do Sol.
Um exemplo mais pop: Matrix, dirigido por duas trans, teve sua metáfora central “take the red pill” sequestrada pelos grupos mais radicais da extrema-direita como símbolo de “não caio na mentira da Grande Imprensa e no fundo Bolsonaro-Trump-Orbán estão descortinando a realidade, isto é, revelando o globalismo malvado quer destruir a família e a civilização ocidental”.
Mesmo a obra mais didática e literal no seu engajamento sócio-político (e existe algo pior do que um livro LITERAL, sem ambiguidades?) pode vir a ser sequestrada e reapropriada. Isso porque, como Derrida já gritou, toda escrita é pharmakon, veneno e remédio misturado, e a opacidade inerente à literatura torna o sentido impossível de ser fixado. Se o sentido não é fixo, a intenção do autor morreu e foi enterrada em 1968, o que nos resta enquanto leitores e produtores de cultura?
E, de novo, como criar literatura após tudo isso, de um modo que o/a autor não se sinta um parasita social em busca de aplausos para reforçar uma vaidade intelectual, como insinua Qohelet, o pregador confuso, em Eclesiastes?
O tema, claro, foi assunto de pelo menos cinco mil páginas de Roberto Bolaño, que não chegou a nenhuma conclusão além de um desespero profundo e uma imagem apocalíptica de um cemitério gigantesco no ano de 2666, enquanto nós somos um olho que se fechar a pálpebra por um segundo, corre o risco de esquecer tudo.
O escritor reimaginado como arquivista (como enxerga Sloterdijk), como retratista da barbárie – é o suficiente? Contar os mortos, em todos seus detalhes, como fez Bolaño, para que as centenas de mulheres mortas no México não fossem esquecidas? Ser testemunha basta?
O pregador de Eclesiastes é enfático ao descrever a busca intelectual com ambivalência: “Ganhei sabedoria e conhecimento (...) mas descobri que isso também é procura do vento. Pois muita sabedoria traz muita tristeza; quanto maior o conhecimento, maior o luto.”
Temos que tomar cuidado para não ler Eclesiastes como um libelo anti-intelectual. Porque a saída, se ela existe, não passa pelo anti-intelectualismo.
Em um dos textos mais bonitos já escritos, Walter Benjamin descreve a história como um amontoado de ruínas que vai se acumulando rumo aos céus. Ele reconhece que toda a história da cultura é uma história da barbárie. Para Benjamin, nem os mortos estão a salvo se os inimigos (na época que ele escreveu, os nazistas, mas aqui podemos pensar em outros). Os inimigos reescrevem a história e quando vemos a ditadura brasileira deixou de existir.
Mas Benjamin, ao contrário dos outros pessimistas radicais que citei, nunca deixa de lado uma escapatória, um horizonte utópico possível. Em cada época, ele diz, precisamos recuperar a tradição que foi sequestrada, não deixar que caia na mão do conformismo. Precisamos agarrar as centelhas espalhadas do passado, recuperá-las, estar ciente do horror e, ao mesmo tempo, de que o futuro ainda não foi escrito.
A filosofia de Benjamin é (apud Löwy) a de puxar o freio de mão. Todos concordam que estamos indo para o abismo, ou melhor, sendo empurrados em direção a ele por essa tempestade chamada progresso. Como frear a máquina?
É possível escrever uma forma de literatura que opere como esse freio?
Meu pai era médico, e sempre vivi sob a sombra de ser um inútil, um parasita, escrevendo meus livrinhos, traduzindo outros, enquanto ele salvava vidas. (No seu funeral, uma massa de velhinhos me cumprimentou e contou alguma história de como meu pai literalmente – e não figurativamente – salvou sua vida).
A Mishná [a primeira parte do Talmude] Sanhedrin estipula que quem salva uma alma, salva todas as almas do mundo; em palavras mais seculares, quem salva uma vida, salva o mundo todo.Livros não mudam o mundo, mas podem salvar uma vida? Uma alma?
É possível escrever um livro que salve uma vida? Uma alma?
Benjamin, repito, nunca abandonou o horizonte revolucionário. Para ele, citando sábios judeus, qualquer porta, por mais estreita que seja, pode ser a fresta por onde entra o Messias. Nós podemos rezar pela chegada da era messiânica, agir com compaixão e generosidade para acelerar a sua vinda, mas seria possível fazer isso através da escrita?
No hebraico, rezar (התפלל) é um verbo reflexivo, rezar-se, ou julgar a si mesmo; mesmo na ausência de uma divindade (caso dos ateus & descrentes), estamos dialogando com nós mesmos com o objetivo de nos transformarmos.
Abraham Joshua Heschel, na marcha de Selma pelos direitos civis dos negros, onde andou de braços dados com Martin Luther King, disse que “suas pernas estavam rezando”. Não apenas ele estava se transformando, mas se envolvia em um processo ativo de reparar o mundo (תיקון עולם).
Existe, debaixo de tantas camadas de máculas, uma forma de escrita literária que possa ser uma reza? E, mais uma vez Benjamin, existe uma forma de literatura que abra frestas de portas para o Messias?
Não faço ideia.
Boa tarde a todos. Redigi de um só tirão essa newsletter enquanto minha sogra distraía baby Samuca; era isso ou não escrever. Sei lá quando sai a próxima e perdoem eventuais erros de citações.
Tratando de conteúdo, o texto se encaminhava bem até o sétimo parágrafo, no qual há uma estranha tentativa de ligar a "alta cultura" ou até a classe dominante em posse da desta às(as?) origens do nazifacismo, quando as duas culturas jamais o mesmo impulso, digamos. Assemelham-se apenas no uso requintado da razão e, às vezes, nem nisso. Já sabe-se bem que o homem, sempre que pode, usou a razão de meio para quaisquer de seus fins, sendo refreeado somente por outros impulsos, irracionais e mais humanos. Todavia, o que acontece quando a razão vira o Deus do homem e sobrepõe as outras vozes dentro dele? Nesse ponto, como já vimos, basta um homem inteligênte, cheio de razão e más intenções para submeter quem puder de seus ouví-lo ao próprio raciocínio, já que a inteligência e a razão agora cala fundo em qualquer humano. Portanto, dar crédito ilimitado à razão, é dar um poder perigoso àos mais inteligentes. É até engraçado pensar o quão tolo, de tanta perspicácia, foram os idealizadores da revolução fracesa julgando que nenhum homem após eles usaria a inteligência, a cultura, a razão para o mal, coisa que os antigos estavam totalmente ciêntes. O maiores genocídios da história podem ser creditados sem pena nas mãos desses gênios tolos. Quanto ao povo da época, continua puro e sempre o será, pois nunca está ciente dessas coisas.
O mesmo vale para os intelectuais que tranquilamente iam exercer suas funções nos campos de genocídios. Nunca respoderam por si.
Acho que deixei claro meu ponto
A tentativa citada no início, porém, é mesma tentativa de culpar a Europa e, mais fundo e perto, culpabilizar os políticos com proxímidades ou até semelhaças no presente. Em suma, pretende-se igualar x a y de qualquer forma. É uma tendência humana usadada para justificar, causar e interromper conflitos que se reforça na política, onde o discurso é a maior arma.
Bem Interresante mesmo é quando, no parágrafo doze, ressalta-se o fato de alguns autores consagrados demonstrarem certos preconceitos, como se isso sequer arranhasse a literatura que produziram( é usado os termos "pessoa física", na esperaça de espantar a contradição que, ao escrever-se "literatura", grosseiramente sucede. Não sei, mas indetifico algo profundamente hipócrita nessa espécie de julgamento. Soa como alguém falando fora da ralidade humana.
Bem, resta ter esperaça que isso mude um dia.
Sobre o resto, é evidente uma preocupação tola com aguns atos político a ponto de até simbolos serem criticados, levados a sério. É. Não sei, não sei. Lembra uma ilha falsa, que se demacha sob nossos pés se resolvermos testar a segurança do solo.