Este é um raríssimo caso de um post que mandei aberto a todos seguidores. Se quiser ler loucuras quinzenais igualmente desconexas, cogite assinar $$ a news.
Ando reescutando uma banda da juventude — Fleet Foxes. Uma banda estereotípica de certo movimento passageiro, que parecia revolucionário, mas que como tudo na vida logo virou música de McDonald’s: indie folk. Uns caras barbudos nas montanhas norte-americanas e camisa de flanela. Uma discografia parida a partir da audição de “El Condor Pasa” de Simon & Garfunkel. Mas estou sendo excessivamente cruel.
Nem sequer entendo por que, antes de falar que gosto de algo, começo listando todos os motivos racionais e objetivos para não gostar daquilo (ver post anterior do Star Wars).
Do que gosto: de bandas que te transportam para uma paisagem. São tantas. Quando se escuta Bruce Springsteen e estamos nas desoladas planícies de Nebraska, onde nunca estive na vida real.
Fleet Foxes me leva, estranhamente, para o estacionamento do Campus do Vale da UFRGS, o verdejante campus onde estudava quando lançaram o primeiro disco em 2008; eram minhas “Blue Ridge Mountains”, onde, aliás, também nunca estive.

Enfim: das conexões e desconexões das coisas. A redescoberta de Fleet Foxes me levou a um disco deles que nunca tinha escutado, The Crack-Up. Que, por sua vez, me levou ao tríptico de ensaios do F. Scott Fitzgerald que inspirou o título.
Fitzgerald, sabemos, enlouqueceu (como sua esposa, ainda que sua loucura seja menos alardeada). Sua narrativa conta de quando, um dia, algo se quebrou lá dentro.
Nas palavras dele, “É claro que toda a vida é um processo de colapso, mas os golpes que fazem o lado dramático do trabalho — os golpes grandes e repentinos que vêm, ou parecem vir, de fora —, aqueles dos quais você se lembra e nos quais bota a culpa e, em momentos de fraqueza, conta aos seus amigos, não mostram seu efeito de uma só vez. Há outro tipo de golpe que vem de dentro — que você não sente até que seja tarde demais para fazer algo a respeito, até que você perceba com certeza que, em algum aspecto, nunca mais será uma pessoa tão boa quanto era. O primeiro tipo de colapso parece acontecer rapidamente — o segundo tipo acontece quase sem que você perceba, mas é percebido repentinamente.”
Botei entre aspas, e não num block quote, e ainda enfiei um negrito na primeira oração, pelo simples motivo de que acho que as pessoas tendem a pular citações em textos. Enfim, lamento por essas pessoas, pois este post terá quase só citações.
Fitzgerald sugere que “um teste de uma inteligência de primeira linha é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda manter a capacidade de funcionar.” Eu diria que não apenas um teste de uma inteligência de primeira linha, mas também de uma sanidade. O exemplo que ele dá é de uma pessoa que nota que a situação é desesperançosa, mas vai lutar para torná-la diferente.
“The Crack-Up”, acredito que nunca traduzido ao português (mas posso estar equivocado), me parece se encaixar numa linhagem de narrativas de colapso mental, uma linhagem tão subterrânea que pouca gente se dá ao trabalho de levantar fios unificadores.
Há o famosíssimo A redoma de vidro, de Sylvia Plath; em alguma medida, Noite, de Elie Wiesel (mas seu colapso tem muitas motivações externas), O peso e a graça, de Simone Weil (mas o colapso está, em alguma medida, fora da narrativa). E há o meu favorito, um livro surrado e esquecido, muitas vezes recortado e agrupado em textos de fim de vida, que é Uma confissão, de Tolstói. Um dos melhores livros já escritos, insisto.
Tolstói se diz, no começo do livro, um cara com tudo na vida: aos cinquenta anos de idade, é um escritor de sucesso. Seus livros não apenas trouxeram fama, como dinheiro, sustento, e validação crítica. Um hit de crítica e público. Sua família era linda, sua esposa amável e seus filhos queridos.
E, de repente, o colapso. “E foi então que eu, um homem feliz, retirei uma corda do meu quarto, onde toda noite ficava sozinho para trocar de roupa, a fim de não me enforcar na viga entre os armários, e parei de ir caçar com uma espingarda, para não me seduzir com aquela maneira fácil demais de dar cabo da própria vida. Eu mesmo não sabia o que queria: tinha medo da vida, desejava me livrar dela e, no entanto, ainda esperava dela alguma coisa”, conta Tolstói, em tradução de Rubens Figueiredo.
A jornada de Tolstói, literariamente devastadora como pouquíssimos textos na história da literatura, é uma jornada até a aceitação de que não seria na racionalidade que encontraria sentido.
Pode a arte ocupar o espaço da fé? Para Tolstói, a resposta é um decidido não:
‘A arte, a poesia?…’ Por muito tempo, sob a influência do sucesso e do elogio das pessoas, me persuadi de que esse era o trabalho que podia fazer, apesar da aproximação da morte, que destrói tudo — a mim, meu trabalho, sua memória; mas logo me dei conta de que também isso era ilusão. Ficou claro, para mim, que a arte é um ornamento da vida, é uma isca que nos atrai para ela. Mas se a vida tinha perdido seu atrativo, como eu poderia atrair os outros?
A arte, na verdade, só consegue ser produzida pré-colapso, quando ainda se acredita em um sentido da vida. Depois do colapso, é fonte de sofrimento.
Enquanto eu acreditava que a vida tem sentido, ainda que eu não soubesse exprimi-lo, todos os tipos de reflexos da vida, na poesia e na arte, me traziam alegria, me divertia olhar para a vida nesse espelho da arte; mas quando comecei a procurar o seu sentido, quando eu mesmo senti a necessidade de viver, esse espelho tornou-se ou supérfluo, inútil e ridículo, ou então torturante.
Para expressar sua crise, Tolstói recorre a um antigo conto anônimo, absolutamente central em sua vida, e ao qual retorna muitas vezes ao longo do livro para tentar buscar atitudes plausíveis após a compreensão desse absurdo, recorrendo ao banquete da cultura ocidental, de Schopenhauer a Eclesiastes. Vale ler a citação na íntegra, pois ele manifesta a paralisia do colapso.
Existe um conto oriental, repetido desde muito tempo, sobre um viajante que foi atacado por um animal feroz, na estepe. Para salvar-se da fera, o viajante pula dentro de um poço seco, mas avista, no fundo, um dragão de goela escancarada para devorá-lo. O infeliz não se atreve a subir para não ser destroçado pelo animal feroz, não se atreve a descer ao fundo do poço para não ser devorado pelo dragão, se agarra aos ramos de um arbusto silvestre que cresceu nas fissuras da parede do poço e se pendura ali. As mãos vão perdendo a força e ele sente que terá de se render à morte, que o espera de ambos os lados; no entanto, continua a se segurar e, enquanto se segura, olha para o lado e vê dois ratos, um preto e um branco, que se movem com indiferença em volta do galho em que ele está se segurando, e roem o galho. Dali apouco, o galho vai ceder e se romper sozinho e ele vai cair na goela do dragão. O viajante vê isso e sabe que será inevitavelmente destruído; mas, por enquanto, se mantém pendurado, procura em volta e acha, nas folhas do arbusto, uma gota de mel, a alcança com a língua e lambe. É assim que me agarro aos galhos da vida, sabendo que me espera, inevitavelmente, o dragão da morte, pronto para me estraçalhar, e não consigo entender para que vim parar nesse tormento. E também eu experimento sugar esse mel que antes me consolava; mas esse mel já não me alegra, e o rato branco e o rato preto — o dia e a noite — roem o galho no qual eu me seguro. Porque vejo com clareza o dragão, o mel já não me traz doçura.
“Esse mel já não me alegra”: o que Tolstói expressa é um famoso sentimento devidamente registrado no DSM como “anedonia”.
Volto a Fleet Foxes, antes que me perca citando o livro inteiro. Esse é um post de citações, não de muitas falas minhas, lamento. Em “The Crack-Up”, o colapso pode ser resumido na frase “Como tudo poderia acabar [fall] em um dia? Será que tínhamos tanta certeza do Sol?”. Mas fazendo o trabalho arqueológico, de cavar no passado, voltamos para a música-título do segundo disco deles, “Helplessness Blues”.
Nela, o eu-lírico começa dizendo que, por muito tempo, julgava-se um floco de neves, único entre flocos de neves (uma metáfora kitsch, reconheço), mas se perguntava se não valia mais a pena ser uma peça funcionante de uma engrenagem servindo a um propósito desconhecido. O dilema entre o individualismo e o coletivismo, ou melhor, entre o ego e a aniquilação do ego, é antigo e está no cerne de Uma confissão de Tolstói, e também de O peso e a graça, de Simone Weil, cuja tradução de Leda Cartum tive o imenso orgulho de reeditar recentemente. Weil, sabemos, optou pelo segundo caminho; sua jornada intelectual e espiritual é pela descriação, pelo enfrentamento ao ego.
Ao final da música do Fleet Foxes, o eu-lírico diz — mas, penso eu, em vez de afirmar, ele se pergunta — “Se eu tivesse um pomar, trabalharia até a exaustão”.
Nessa frase, tão singela, se entrevém algumas coisas. A primeira, mais óbvia: a inveja da grama do vizinho, sempre mais verde. A ideia de uma vida simples, rural, afastada do grande núcleo de egos que é a cidade e dos afetos capitalistas. É claro que o eu-lírico não pensa que a vida do trabalhador do pomar inclui uma nuvem de mosquitos que o pica sem pudor. Eu sei, porque também sempre fantasio com a vida simples, o monasticismo. A segunda, que certamente não estava na intenção do cantor: o pomar como mística, como busca por sentido. A imagem do pomar, “pardes”, é metáfora centralíssima no pensamento judaico.
Conta o Talmude que quatro sábios entraram no pomar. Cito:
A Gemara continua a relatar o que aconteceu com cada um deles: Ben Azzai vislumbrou a Presença Divina e morreu. (…) Ben Zoma vislumbrou a Presença Divina e foi afetado, ou seja, perdeu a cabeça. E com relação a ele, o versículo afirma: ‘Você encontrou mel? Coma tanto quanto lhe baste, para que não se farte dele e o vomite’ (Provérbios 25:16). O terceiro, Acher, cortou os brotos das mudas. Em outras palavras, ele se tornou um herege. Rabi Akiva saiu ileso.
Destaquei o mel porque, vocês sabem. Conexões, constelações.
Quatro entraram no pomar, só um não enlouqueceu.
Mas, enfim, não era nada disso que eu queria falar. Nem me lembro do que eu queria falar.