Notas sobre "Verissimo" (2024), de Angelo Defanti
Um documentário não-documentário sobre um homem público não-público
Tive o prazer de assistir, na Biblioteca Mário de Andrade, ao documentário Verissimo, de Angelo Defanti, uma obra que me pegou de surpresa, mesmo sabendo do projeto há anos. Ao contrário de muitos de meus conterrâneos, nunca tive uma fase intensa, de obsessão, por Luis Fernando Verissimo, embora seu pai, Erico, tenha sido uma das minhas primeiras paixões literárias. O gênero que LFV praticou, e no qual ele se consagrou, isto é, a crônica de viés humorístico, sempre ocupou o encontro de dois círculos em um Diagrama de Venn que pouco me interessam como leitor: a vida cotidiana e a comédia. De certo modo, são os campos deixados livres pela sombra da obra de seu pai.
Como foi falado no debate que seguiu a exibição do filme, ou melhor, como Michel Laub falou, os textos de LFV não eram exatamente crônicas, possuíam uma forma sui generis, com uma ideia concreta por trás que era argumentada com leveza no texto (parafraseio com intervenções minhas). No que concordo é que os textos de LFV são de observação, fina e irônica, em geral da classe média por onde ele circulava, ou quase não circulava.
O documentário – brilhante, embora não precise adjetivá-lo, pois minha descrição transmite isso – mimetiza em certo sentido a estrutura narrativa de LFV, com uma câmera baixa observando o cotidiano do autor, um recluso que muito sai de casa (não consegue recusar entrevistas ou convites).
Tudo, em alguma medida, é crepuscular em Verissimo: o tempo está passando para um corpo artrítico, que sofre para se levantar da cadeira, apesar das visitas frequentes de um fisioterapeuta. Escutamos enlouquecedoramente um tiquetoque de um relógio antigo. A cidade também está num ponto de inflexão e o tempo a corrói.
A casa da família Verissimo fica a 500 metros do apartamento onde morei por 20 anos da minha vida, na rua Felipe de Oliveira, no bairro Petrópolis. Nunca vi LFV andando por ali, mas muito passei em frente à sua casa. Inclusive tentaram me assaltar ali, séculos atrás. Já caí de skate na praça da caixa d’água, do outro lado da rua.
Como segui frequentando o bairro, vi a cidade ser destruída, muito antes das enchentes, pela especulação imobiliária que desafia qualquer plano diretor. Casas, casinhas ou casarões foram sendo comprados ou apropriados de outra forma para dar lugar a prédios de estética neoclássica de drywall ou com as típicas pastilhas marrons tão comuns em Porto Alegre e no ABC paulista. Defender a preservação dessas casas pode soar como um esforço elitista, Sonia Braga em Aquarius, então não me alongarei nisso.
O documentário registra quinze dias que precedem a festa de 80 anos de LFV e as homenagens a ele prestadas. Ele cede entrevistas à TV, aos jornais, viaja a São Paulo para falar com cronistas de cá. As perguntas mais complexas são rebatidas com uma resposta curta, quando não sem graça. Às vezes, uma piada ensaiada e repetida em todos os cantos. Há um desconforto perene no escritor, captado de forma dolorosa pelas câmeras estáticas de Defanti.
Esse desconforto não se limita às aparições públicas e discursos oficiais, mas também à festa, repleta de amigos (e um que outro interesseiro, vai saber). Em todos os planos, exceto assistindo ao jogo do Inter ou escrevendo sozinho no escritório, ou brincando com os netos, LFV parecia preferir não estar lá. Mas ele está. Por quê? Por que ele se submete a eventos, entrevistas...? Porque não consegue dizer não, explica ele. Podemos acreditar? É algo da ordem da vaidade, de não ter seu nome esquecido?
LFV não tem celular, nunca teve. Redes sociais? Ele sequer tem Whatsapp. É o crepúsculo de um artista que pode ter uma vida offline, sem entrar no picadeiro da constante autopromoção, do constante ato de tornar público os elogios recebidos. Seu modo de ser escritor também definha: depender da mídia impressa é impossível hoje. Mas, mais do que contar com a boa vontade de Segundos Cadernos mirrados, segue a sua postura de evitar declarações bombásticas, comentários furibundos e tudo o que alimenta o algoritmo.
Mas, ainda assim, querem entrevistar a lenda, e a lenda segue aceitando entrevistas, mesmo quando suas não-respostas pareçam jogar contra a divulgação. Ele quer ser deixado em paz ou ele gosta da atenção? O documentário, é claro, não resolve isso. O escritor mais taciturno do Brasil não poderia deixar de ser, de algum modo, enigmático.
Não foi sempre assim, sabemos: LFV viajou o mundo, tocou saxofone em shows de jazz. Seus interesses múltiplos se desdobram nos romances, como o policialesco Borges e os orangotangos eternos. Aos 80 anos, só queria que o Inter estivesse melhor no Brasileirão. Há um enfado permanente, rompido apenas nos jogos de imaginação com a neta, a única coisa que extrai um sorriso de seu rosto, ou nos atos de generosidade da esposa.
Verissimo – filmado em 2016, embora só tenha chegado à luz dos cinemas em 2024 –, com sua fixação por rotina, de longe parece ecoar um filme recente, Dias perfeitos, de Wim Wenders, no qual um homem encontra uma espécie de tranquilidade na repetição de tarefas braçais como faxineiro de banheiros públicos. Não que o filme de Defanti traga qualquer idealização das ruínas do capitalismo tardio. No entanto, o que LFV faz, rotineiramente, diante de um teclado gasto, rejeitando a aposentadoria, não é braçal, e sim criativo. Com uma mente que parece operar em outro ritmo que o corpo vagaroso, ele segue opinando, desenhando e escrevendo.
As cenas de Verissimo voltam sob outro viés: e se não fosse ennui, timidez, falta de habilidade social, mas sim uma profunda autoconsciência que animasse o LFV de 80 anos? Uma autoconsciência do ridículo, sim, mas que ele consegue, por algum mecanismo que talvez também animasse os neurotransmissores de David Foster Wallace, transmutar em ternura e carinho. Assim, LFV não quer estar lá, naqueles lugares, cercado de gente, tudo é absolutamente ridículo e, no entanto, é tudo o que há, é o ridículo que o enternece, é o fertilizante que precisa. E resta a pergunta de se esse estar no mundo também é crepuscular ou se ele se renova a cada geração.
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O debate que mediei, com Veronica Stigger, Paulo Scott e Michel Laub, foi gravado e deve logo estar disponível no Youtube. Atualizarei o post com o link quando possível.
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Eu conheci o tímido LFV. Sem muitas palavras, deixou-se fotografar com esta fã aqui. Tive ocasião de, há alguns séculos atrás (o tempo voa!) entrevistar o Érico Veríssimo. Naquela noite, LFV estava em casa, assistindo a algum programa na TV. Parecia estar sozinho. Jovem, fechado, enquanto seu pai estava sempre disposto a uma prosa com quem chegasse. Talvez LFV tenha criado seu próprio estilo, cômico (?), irônico para não ser a réplica apagada de seu famoso pai. Gosto de ambos, cada um no seu barco, navegando pela vida.