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Consultório da loucura #9

antonioxerxenesky.substack.com

Consultório da loucura #9

No qual o autor encara questões de garimpo e seleção para publicação na editora e uma pergunta perspicaz sobre narrativa & estranheza

Antônio Xerxenesky
Nov 4, 2022
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Consultório da loucura #9

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OK, esse é o nono consultório da loucura, não preciso mais ficar apresentando, né? (são respostas a perguntas feitas no insta, em post aberto, arquivo dos anteriores aqui)

Vou começar respondendo duas ao mesmo tempo, pois se complementam e é A Questão do meio editorial — descobrir o que se publicar:

P: Pode falar sobre como funciona o processo para escolher/garimpar livros para publicar na DBA?

P: Tem alguma técnica específica para filtrar originais no trabalho de editor?

Bom, antes de mais nada: não sou o único funcionário da editora. Tenho um chefe e uma assistente e a decisão do que será publicado pelo selo, de certo modo, passa por todas essas instâncias. Há livros que meu chefe descobre; há manuscritos que minha assistente descarta.

Quando o selo editorial começou, fizemos algo muito básico: fomos atrás de resenhas positivas de livros estrangeiros em jornais como Guardian, Le Monde, El País, NYT etc. É uma maneira boa de descobrir novos títulos, ainda que, por olharmos para esses grandes veículos, estejamos sempre circulando no mainstream. Ah, e também olhamos as páginas de editoras que adoramos (NYRB my love). Para dar dois exemplos concretos de livros que amo: Noite e dia desconhecidos, da Bae Su-ah, foi descoberto em resenha do Guardian; Tudo em vão, do Kempowski, explorando o catálogo da NYRB.

A partir daí, entramos em contato com agentes para verificar a disponibilidade dos direitos de tradução no Brasil. Em alguns casos, chegamos tarde — há um livro húngaro ótimo que saiu pela Intrínseca que piscou no nosso radar logo no começo, mas nos atrasamos.

Nesse início da editora, depois do primeiro contato com os agentes, logo passamos a receber catálogos. E, claro, fizemos reuniões e nos apresentamos para as agências brasileiras, que, além de oferecerem títulos nacionais, intermediam muitas agências estrangeiras. A partir daí, começa a despencar a enxurrada de catálogos — dezenas de PDFs com 50 títulos cada. E vamos navegando por sinopses, blurbs… Pedimos o arquivo digital do que parece interessante, em inglês/espanhol/francês (as línguas faladas no escritório).

Muitas vezes, livros super interessantes têm apenas um sample disponível nas línguas que falamos; até agora, nunca nos arriscamos em comprar um livro com base apenas em uma amostra.

Todos esses PDFs de manuscritos brasileiros e livros estrangeiros vamos organizando em ordem de prioridade e distribuindo quem, do escritório, irá ler. Quando um livro é bom, uma segunda pessoa lê (e aí algumas discordâncias surgem).

O meu gosto literário não é o mesmo das pessoas que trabalham comigo, e isso é ótimo, pois o selo DBA Literatura não deve ser uma mera extensão do meu ego.

Há também outros fatores que entram em consideração: temos o objetivo de ter paridade de gênero nas publicações, e buscamos também uma vasta diversidade mundial (isto é, gente de tudo quanto é país). Mas, recentemente, andamos mais e mais fascinados com a literatura brasileira, e acho que a maioria de originais que estão na pilha são desta terra. Também já contratamos leitores de originais para darem parecer (como disse, a pilha é imensa).

E faltou mencionar algo muy essencial: recomendações. Vários livros foram indicações de parceiros, tradutores etc. Adoramos recomendações. Podem mandar.

Inevitavelmente, muitos livros foram perdidos porque somos minúsculos e outras editoras maiores ganharam a disputa pelos direitos. Uma vez mandamos uma oferta de 1000 USD e riram da nossa cara. Faz parte. (todo dia torço para que esse livro nunca saia no Brasil, só de raiva).

Dito isso, temos no momento muito mais originais para avaliar do que somos capazes de dar conta de ler em 3 pessoas (sendo que vários títulos passam por mais de um serumano). Por isso juntei a segunda pergunta: algo que faz descartar logo de cara. Bom, acho que adequação ao eixo editorial é algo muito importante (e que eixo é esse? difícil definir). Mas há assuntos que, de longe, parecem fugir do escopo de interesses de todos. A segunda coisa, já no âmbito textual, diz respeito à pobreza formal. Abuso de lugar-comum é o maior alerta de que o livro é ruim. Narrativa declaratória. Adjetivismo. Anglicismos, arghs, gente que escreve com inversão de adj-sub. Em geral, quando o livro é ruim ruim, dá para notar em até 10 páginas.

P: Sabe aquela frase “escreva o que você sabe”? Ou a subversão “escrevemos sobre o que não sabemos daquilo que sabemos”? Pois então. Minha pergunta: como o não saber pode ser espaço generativo pra criação? Falo da incerteza, do escondido, da ambivalência, do inexplicável, do medo, da curiosidade, daquilo que só é parcialmente visto… Como “desfamiliarizar” o conhecido / adentrar o desconhecido? O que esse exercício pode nos trazer que a “estrada mais usada” não pode?

Se não me engano (preguiça de conferir), Stephen King fala desse “escreva o que você sabe” no seu ótimo On Writing. Ele é a favor disso, mas com uma pequena subversão. Escrever o que você sabe não é fazer uma autoficção a respeito da sujeira no seu umbigo. Se você trabalha de faxineiro e sabe tudo de como desentupir uma privada, por que não criar um faxineiro em Marte que se envolve em uma grande conspiração interplanetária?

É uma maneira de ver as coisas; do meu ponto de vista bem específico, adoro começar projetos que me obrigarão a pesquisar algo que não sei. Claro, eu já era fã de Welles quando fui escrever F, mas só então li quilos de biografias, assisti a todos os filmes que não tinha visto ainda etc.

Mas a pesquisa opera no âmbito do puramente racional, e esse tipo de perspectiva talvez interesse mais quem possui pulsões acadêmicas (afinal, parece que o projeto criativo ganha contornos de tese).

Há algo do irracional e do estranho que também é interessante; talvez você possua uma dúvida sobre você, a relação que tem com sua mãe. Talvez uma dúvida existencial (o que significa estar vivo?). Talvez um trauma que não conseguiu resolver na terapia (como lidar com a morte de uma pessoa querida?). E, a partir daí, dois caminhos se descortinam: o direto, o escreva o que você sabe, ou o salto no desconhecido, em tudo aquilo que foge à linguagem. E justamente por estar no terreno do inefável, você (como escritora) terá que usar palavras para tentar delinear o que não pode ser visto.

Mergulhar nisso sem tantas certezas, sem escaletar o projeto, sem saber onde você quer chegar. O meu As perguntas saiu de uma pergunta [ops] que mencionei logo acima; eu poderia ter tomado o caminho puramente autobiográfico, mas o que fiz foi: 1) inventei um cenário ficcional, baseado em um gênero estabelecido (o terror); 2) tinha um ponto de partida e não um de chegada (alguém pode argumentar que esse é o problema do livro, mas ok). Sinto que a escrita do livro, para além de qualquer questão estética, me levou a me conhecer melhor. Por causa desse salto no desconhecido. Ainda que o livro nunca tivesse sido publicado, que eu tivesse guardado os originais na gaveta — poxa, esse autoconhecimento já está de bom tamanho, né? Precisa pedir mais algo do trabalho artístico?


P.S.: Amanhã, dia 05/11, participo do O texto e o tempo, série de falas & discussões sobre newsletter, escrita, literatura. Gente muito mais experiente que yo estará lá, compartilhando sabedoria. Veja a programação aqui.

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J Barros
Writes Enquanto não sumimos
Nov 5, 2022

Oi, Antônio. Qual o "livro húngaro ótimo que saiu pela Intrínseca"?

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