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Consultório da loucura #7

antonioxerxenesky.substack.com

Consultório da loucura #7

No qual o autor responde sobre diferença entre ler a trabalho e por prazer; se a paternidade influencia a escrita & leitura; e se vale contar uma história narrada tantas vezes?

Antônio Xerxenesky
Oct 11, 2022
27
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Olá!

Se você é novo por aqui, costumo abrir caixinhas no Insta e perguntas mais amplas são respondidas nesta news gratuita e numerada (Consultório da loucura #X). Algumas respostas mais específicas vão para posts disponíveis para apoiadores pagos (que ficam salvas no arquivo que pode ser acessado o tempo todo na home desta news). Quem colabora $$ também tem acesso a outras pensatas sobre tópicos diversos. Por sinal, semana que vem é שמחת תורה, quando todas as sinagogas resetam a leitura da Torá e começam o ciclo outra vez — lê-se o pentateuco inteiro em um ano. Vou fazer um post semanal sobre a porção (parashah) da semana por um viés literário/místico/decomentáriosaleatórios. Se você gosta dos desvarios aqui escritos, cogite apoiar o projeto e a pagar as fraldas do Samuca (o plano, ainda bem, é desfraldar no verão agora).

Finda a enrolação e a passagem do chapéu (botão vermelho abaixo), vamos para as perguntas do momento:

P: Vale a pena contar uma história que já foi contada muitas vezes?

Sim, claro que sim.

Quantas vezes lemos/vimos uma história de amor adolescente? De guerra? De… retorno ao lar, à cidade natal…?

A existência da Odisseia de Homero não anula, mas permite a existência de Ulysses de Joyce.

Sejamos mais diretos: todas as histórias já foram contadas. Todas as estruturas se repetem, exceto, claro, as radicalmente experimentais, mas essas são difíceis de repetir e difíceis de executar a contento se é a primeira tentativa.

O que muda/pode mudar e que torna uma narrativa repetida valer a pena ser lida/vista?

  1. ponto de vista: J.M. Coetzee pode ter soado muito inovador quando publicou Foe em 1986, um de seus romances mais radicais, no qual imagina a história de Robinson Crusoé contada por uma mulher que esteve com ele na ilha. O título, Foe, inimigo, remete a Daniel Defoe e ao ato de exclusão da mulher da história, brincando com o fato de que narradores tem suas intenções privadas e muitas vezes se tornam o inimigo ao decidir o que entra e o que fica de fora do seu texto. Mas, antes mesmo de Coetzee, Angela Carter já estava reescrevendo contos de fadas de um ponto de vista feminista (A câmara sangrenta é de 1979) e com certeza conseguimos rastrear outros mil exemplos no passado. De qualquer forma, essa prática pós-modernista de abordar um mito/história mui repetida por outro ponto de vista decolou mesmo na última década.

  2. deslocamentos/sobreposições temporais: se formos pensar, toda ficção científica imagina um futuro para pensar questões do seu presente (o exemplo mais óbvio: 1984 reflete sobre o totalitarismo dos anos 1940). Já vimos mil vezes histórias de brigas entre maridos pamonhas e suas ex-mulheres furiosas, mas só Philip K. Dick as situa em Marte de 2350. Esse movimento de renarrar algo em outra temporalidade não opera somente com o futuro. Odeio me usar de exemplo, mas meu Tristeza infinita trata da Suíça dos anos 1950 para buscar a origem (& ao mesmo tempo metáfora) de questões mui atuais de saúde mental (a separação entre organismo físico / mente) + conviver com o fascismo naturalizado nas opiniões alheias. Claro, falei de temas, não de narrativas per se, mas também serve.

  3. linguagem: esse é o mais importante. Cada bom artista tem a sua voz própria. Por mais batida que seja a história, se a linguagem for sui generis, a história terá muito frescor. A história de viver a infância sob a sombra de um pai ultrarreligioso: trama batida, certo? Mas só James Baldwin faria um livro incrível como Go Tell it on The Mountain.

P: Como a paternidade influenciou a sua maneira de encarar a literatura (como escritor e leitor)?

Difícil de precisar. Sou pai há apenas dois anos e meio. Mudou toda a minha vida? Sim. Meu filho é a maior alegria. Desde então tenho um milésimo do tempo livre? Sim.

Acho que filhos realmente causam um choque muito básico de organização do cotidiano. De repente parece que o dia só tem 12 horas. De certo modo, como leitor, somos instados a não perder tempo com bobagem. Tenho abandonado muuuuuuito mais livros do que o normal. Não insisto até a página 100 para ver se o bicho pega. (isso tem gerado problemas, pois agora estou com uns quinze livros começados e na verdade talvez esteja vivendo uma ressaca literária).

Como escritor, eu acho que apenas reforça algo que já tinha cravado na minha cabeça, isto é, que só vale a pena escrever e publicar se você tem algo (intransmissível de outra forma) a comunicar. Não faz o menor sentido ficar nessa de carreira literária (piores palavras), escrever para ganhar prêmio, para ser respeitado etc.

O Daniel Pellizzari — a figura mais próxima que tenho de um mentor intelectual — saiu de sua caverna e deu uma entrevista de duas horas sobre a sua trajetória & sobre por que só publica um livro por década. Ali, ele (pai de dois filhos) fala um pouco sobre essa postura radical que, de certo modo, é a única plausível. Corta a besteira. É preciso pensar se estou publicando “uma coisa que pode aproximar as pessoas das experiências que eu acho interessantes ou se estou fazendo aquilo só para ser elogiado” (palavras dele).

Em termos mais amplos, a paternidade também tem algo de extremo pois deixamos de nos sentir jovens (ainda mais eu perto dos 40). Walser fala isso em Passeios com Walser, quando conta que por não ter tido filhos, ele se preservou como o filho eterno, uma criança infinita. Virar pai nos confronta com a pergunta se já somos maduros o bastante e nos incentiva, mais uma vez, a cortar as besteiras.

P: Qual a diferença entre ler por trabalho e ler por prazer?

Primeiro lugar, que trabalho?

Como editor, o meu cérebro está atento para muitas questões, inclusive uma que o cérebro ignora em outras atividades de leitura: a vendabilidade. Quantos manuscritos não descartamos porque tínhamos certeza de que ia vender 100 exemplares?

Como professor de escrita, o meu cérebro está triplamente atento a tiques de linguagem, estruturas frasais e repetições, e olhar da leitura é um pouco o de um membro da banca de qualificação: você quer dar sugestões para ajudar aquele trabalho a chegar no seu potencial máximo.

Já lendo por prazer, o fato do livro já estar na sua forma final, imutável, impresso, tira todos esses pesos e posso viajar para seja lá onde o livro me conduzir. Por isso me irrito tanto com resenhas (em geral amadoras) que sugerem, como se o autor estivesse aguardando este cliente amazon anônimo opinar sobre o que fazer com aquele personagem ou o capítulo final do livro. “O livro tinha que acabar na página 200”. Tá bom, mas você não é o autor ou o editor, relaxa. “Como deveria ter sido o final de Game of Thrones?” Sei lá, não sou o roteirista da série. Posso não gostar do final, mas não cabe a mim dizer como escrevê-lo. Por isso, minha leitura por prazer é baseado no que está no texto e nada mais.


Duas notícias:

  1. Escrevi o texto crítico sobre a exposição Precipitação de Nicholas Steinmetz. Ela entra em cartaz quinta (13/10/22), 18h, na Av. Dr. Arnaldo, 1638. Vamos?

  2. Participarei do evento sobre newsletters O texto & o tempo no começo de novembro, mesmo sendo um novato nisso de newsletters e mesmo me sentindo ridículo a cada passada de chapéu. A programação completa com gente muito mais experiente do que eu está aqui. O evento ocorre 5 e 6 de novembro pelo Zoom.

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