Consultório da loucura #5
No qual o autor responde sobre libertar-se de amarras da concisão, enfrentar autocrítica e outros tópicos calientes
Sem mais enrolação, vamos para as respostas de algumas perguntas que caíram na minha caixa de Instagram.
Inscreva-se e cogite pagar $$ para textos mais pessoais e de outros assuntos menos literários. (mas também pretendo soltar uns posts com paywall de tópicos literários)
P: Como experimentar mais na escrita? Sofro de objetividade em excesso (jornalista)
Depois de sei lá quantos anos dando oficinas, e depois que mais de 100 alunos já passaram por mim, posso dizer que desenvolvi uma habilidade maluca em detectar jornalistas nos textos (assim como consigo detectar quem veio das Exatas).
Por um lado, jornalistas têm muito a seu favor - não caem em diversas armadilhas de novos escritores de ficção, como adjetivismo, abuso de ekphrasis… e também conseguem produzir textos em prazos apertados. Por outro, essa escola de concisão pode podar muitas formas narrativas.
De certo modo, uma pessoa do jornalismo tem dois caminhos: investir na secura, que é a linhagem Hemingway/Carver, ou compartimentalizar. Dizer a si mesmo que na redação escreve assim, mas chegando em casa vira outra pessoa e se liberta dessas amarras. Algo que pode facilitar essa vontade de experimentar é ler autores que trabalham, justamente, com o excesso. Pegar Contra o dia, do Pynchon, que é bastante legível (comparado a O arco-íris) e, ao mesmo tempo, verborrágico. Ou ir para textos que fogem de toda regra na hora de descrever e criar similes (penso em Meridiano de sangue, do Cormac McCarthy). No Brasil, um dos reis do excesso é o Samir Machado de Machado, especialmente em Homens elegantes, meu favorito do autor.
O excesso é o inimigo da perfeição e eu, pessoalmente, detesto a perfeição.
P: Faz uma pensata sobre tramas secundárias no romance, se não for um pedido abusivo (rs)
De certa forma, essa pergunta se conecta com minha resposta anterior. O que tem dado muito certo, no Brasil, é a novelinha redonda, que em 150 páginas conta uma história com início-meio-fim acompanhando de perto um só personagem (A pediatra, da Del Fuego, é um exemplo que me vem à cabeça) que tem um arco de personagem claro e identificável. Tramas secundárias é algo muito inerente ao romance stricto sensu e talvez esteja até fora de moda.
No meu Tristeza, fiz isso ao acompanhar mais de perto três pacientes (cada um traz um diferente desfecho - cura pela fala, cura pela medicação, ou fracasso catastrófico no tratamento psiquiátrico). Esses desfechos interferem diretamente na jornada intelectual/psíquica do protagonista. A questão da trama secundária abre a pergunta: ela precisa se relacionar diretamente com a trama principal?
Há o caso clássico do filme Chinatown, que é muito exemplar da narrativa policial, no qual um detetive investiga dois casos aparentemente sem relação e descobrimos, ao final, que tudo estava conectado. Por outro lado, gosto das narrativas de Pynchon porque há uma proliferação descontrolada de tramas e personagens, e nunca sabemos o que terá fechamento e o que será abandonado.
De modo geral, indico a pessoas lutando para escrever o primeiro livro que se foquem em uma história mais fechada e que depois, no futuro, metam o pé na jaca (embora essa não tenha sido a minha trajetória). Mas, mais uma vez, cada caso é um caso.
Há um debate em 2666 que analisei obsessivamente no Mestrado & Doutorado, que é do exercício perfeito de estilo (a novela redondinha) vs. o romance verborrágico/enciclopédico:
Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez. (BOLAÑO, 2004a, p. 225, trad. Eduardo Brandão).
Eita, acabo de notar que essa resposta serve muito bem à anterior mesmo.
P: Decidi entrar no mestrado (letras). Erros que não posso cometer no projeto?
Olha, como uma pessoa que cometeu muitos erros no seu mestrado, posso dar dicas com base no meu fracasso.
Algumas coisas:
Não abocanhe mais do que o necessário. Lembre-se que um TCC é para mostrar que você é alfabetizado, um Mestrado é para mostrar que você aprendeu a fazer perguntas, e é só no Doutorado que se propõe algo, que se afirma. Então, nada de tentar abordar obra completa de fulaninho.
POR FAVOR CONTRATE UM REVISOR EXTERNO (sério)
Atenha-se a uma linhagem teórica. Não tente, por exemplo, misturar Deleuze com algo antideleuziano como Wittgenstein. Descubra o que você gosta e stick to it. Eu, por exemplo, me dei mal: totalmente educado nos pós-estruturalistas, descobri, no meio do mestrado, que eles eram um grande pastel de vento para o objeto que resolvi abordar, e migrei na metade para a turma da Teoria Crítica. Só que, como Mestrado é só primeiro e último ano, não consegui me aprofundar em coisas de muita importância e hoje me constranjo com a superficialidade da abordagem que tive em diversos momentos.
E lamento vos dizer: depois que sua dissertação for publicada, você vai encontrar erros argumentativos e querer refazer. Mas você perguntou do projeto. Foco em fazer um projeto redondo (bolinhas 1 e 3 desta resposta).
P: Como enfrentar o maior crítico de todos, no caso, a autocrítica?
Como quase tudo na vida, acho que existe um meio-termo saudável.
Zero autocrítica e você vira um abismo sem fundo de ego que acha cada peido que solta genial. De modo geral, isso funciona muito bem no Brasil — o que tem de gente se vendendo como última bolachinha só não é maior do que tem de gente comprando esse discurso. Ego estratosférico e autodivulgação esmagadora trazem resultados.
Por outro lado, a autocrítica excessiva pesa tanto que muitas vezes impede/atravanca a produção e alimenta gavetas. Em alguns casos, OK (a síndrome do impostor não é uma síndrome se a pessoa é de fato medíocre), mas em geral, de acordo com o Datadados-que-tirei-do-rabo, as pessoas mais talentosas são as que possuem o superego mais violento. Então, para enfrentar essa autocrítica vigiar-e-punir, o ideal é expor sua produção para um terceiro, uma pessoa que julgará dosando tanto a geburah quanto a chesed, isto é, será um interlocutor justo, que pode avaliar com sinceridade, e conta com a quantidade necessária de imparcialidade & isenção.