Consultório da loucura #4
No qual o autor responde perguntas curtas sobre ressaca literária, escrita de ensaios, potencial terapêutico da literatura, qué hacer de DFW & mais.
Sigo respondendo perguntas que chegam na caixinha do Instagram;
agora, para quem não sabe, é possível apoiar essa newsletter. Comecei lentamente a produzir conteúdo inédito e logo irei inundar a caixa de correio dos pagantes. Além disso, me obrigo a responder 100% das perguntas enviadas por apoiadores.
Sim, é constrangedor tentar se vender. Passei anos enfrentando essa vergonha. Na verdade, acho que fiquei 7 anos sem postar uma selfie no Instagram. Mas aí a gente fica velho e especialista em diferentes cheques especiais e deixa de se importar com “o que vão pensar de mim, pedindo um trocado! pedindo para que comprem esse meu livro meia-boca!” e estende o chapéu.
O meu chapéu tem o formato de um botão vermelho:
Mas vamos às perguntas:
P: Livros que ajudam a curar a ressaca literária?
Cada vez mais gente passa por isso [a tal ressaca]; eu passo por isso com alguma frequência. Geralmente surge depois de ler vários livros mais ou menos. A gente olha a estante e pensa que não tem nada para ler, como se uma obra medíocre contaminasse, sorrateiramente, toda a nossa biblioteca.
Costumo fazer duas coisas para tratar essa ressaca:
1. ler algo de um gênero muito diferente, ou de um universo temático muito diferente. Cansei de lit BR? Bora ler esse tratado gnóstico do século IV. Exausto de romances realistas? Bora ler poesia.
2. ler um livro que te pegue desde as primeiras páginas. Pensa no começo de Respiração artificial, do Piglia: “Vale uma história? Se vale, começa em…”. Um livro que indico bastante como tratamento ressaquento: Leaving the Atocha Station do Ben Lerner. Já nas primeiras páginas somos pegos por um tsunami reflexivo & instigante.
(acima, Susan Sontag vestida de urso)
P: Dicas para quem queria se meter a escrever ensaios?
Uma teoria provavelmente nada original — o ensaio é o gênero da nossa época. Todos nós habitamos o universo da rede social e somos frequentemente expostos a textões, threads, pensatas no Medium etc. O que mais lemos, queiramos ou não, são versões diluídas do formato ensaístico.
Se há uma crise da ficção contemporânea, esta está ligada à pulsão do real. O ensaio atual, que mescla vida pessoal com reflexão (olá, John Jeremiah Sullivan, olá, Rivka Galchen, olá, Jia Tolentino), é nosso modo de estar no mundo, vivendo e pensado obsessivamente sobre o que estamos vivendo.
Além disso, nós, dessa classe média urbana, adoramos uma terapiazinha, deitar no divã e co-analisar com o/a coitado/a do/a analista tudo o que vivemos. Somos treinados para overthink. O ensaio é a elaboração através da linguagem disso.
Então, não sei se tenho dicas. O ensaio já está dentro de você.
Leia Susan Sontag, talvez. Porque tudo o que se tem para aprender sobre ensaio pós-Montaigne está lá na Sontag.
P: Você acha que a escrita pode levar ao delírio, ou a escrita é a tentativa de cura?
Ambos.
Acabei de usar a metáfora do se deitar no divã; voltemos a ela. Quando você está fazendo terapia, é forçado a chafurdar em memórias que ocupam amplo espaço nessa cabecinha, a descobrir sentimentos ambivalentes, e a expor isso.
A literatura, pelo menos a literatura não-comercial, que a pessoa faz porque busca comunicar algo para um hipotético leitor, tem um pouco disso.
Na terapia, estamos cagando para a linguagem, queremos a comunicação direta. Na literatura, temos o peso estético moldando nossa imaginação ao chegar na página. Essa tarefa de expressão artística possui, por si só, um caráter terapêutico.
No entanto, também pode levar ao delírio. Porque estar diante da página em branco é sempre um convite para revisitar tudo aquilo que não queríamos revisitar & que tira nosso sono à noite.
P: Como organiza leituras que se acumulam? E cria tempo/concentração para ler?
Eu não organizo e minhas pilhas estão ridículas. De leituras por obrigação, tenho mais ou menos 35 manuscritos para avaliar. De leituras por prazer, diria que tenho uns 60 livros de lit br contemporânea que recebi, uns 80 livros de tudo quanto é canto que fui comprando ao longo dos anos, e sei lá quantas coisas para estudar/pesquisar tópicos que me interessam, além dos livros para dar uma base estrutural para o pós-doc que estou ensaiando entrar há séculos.
Não consigo dar conta, não tenho organização.
Criar tempo? É só botar o filho pra dormir. Concentração? Não sei o que é falta de concentração. Quando sobra uma horinha para ler na minha noite/madrugada, vou com tanta gana para o livro que estou tão imerso naquilo como quem salta de trampolim em uma piscina olímpica de álcool e benzos.
P: Pode fazer uma crítica da obra de DFW? Lembro que você postou uns trechos do livro de entrevistas e matérias sobre ele. Sou particularmente apaixonada pelos ensaios, mas ainda tentando me entender sobre a ficção.
Já fui muito nerd de DFW; como todo homem nerd litérario branco, abracei o Infinite Jest nessa época internet 1.0 (começo dos anos 2000) e chorei quando ele se matou.
Aí o tempo passou; saiu o Graça infinita em português e lá fui eu reler para redigir uma resenha para o IMS. Que choque. Descobri que não gostava mais do livro. Achei o livro - gasp - provinciano. De um solipsismo norte-americano absoluto. Nada das referências se traduziam para cá. Capítulos chatíssimos.
Ainda gosto de várias coisas do DFW — os ensaios, as entrevistas, algumas posturas em relação à literatura e à vida (pelo menos da boca para fora; há indícios de que ele foi uma pessoa horrível). Mas da ficção? Pouca coisa sobreviveu para mim. Alguns contos, os mais realistas e quadrados: Forever Overhead e Good Old Neon.
Acho que um dos maiores exemplos da minha ruptura com DFW pode ser sintetizado a partir da novela Westward the course of empire takes its way. Esse texto, de mais ou menos 100 páginas, gira em torno de uma crise do pós-modernismo encenada por John Barth e seu maravilhoso conto Lost in the Funhouse; trata de uma crise da literatura que analisa obsessivamente a si mesma, que fica paralisada pela falta de regras e pela liberdade que acaba se encarcerando na prisão de segurança máxima chamada metaficção.
Barth criou dois ensaios, Literature of Exhaustion / Literature of Replenishment debatendo essa crise. Juntos, o conto e esses dois ensaios, compõem o manifesto por excelência explicando o que é o pós-modernismo literário. E DFW foi lá, escreveu uma novela de 100+ páginas para debater, através da ficção, essas questões.
Até aí tudo bem.
Só que:
QUEM DIABOS SE INTERESSA POR ISSO?
Claro, o Antônio imbecil de 20 e poucos anos achava aquilo delirantemente interessante.
Hoje, com o mundo explodindo em tantas tensões & crises, essa novela do DFW me parece a obra literária mais provinciana do planeta. Sério, ele escreveu uma novela inteira para rebater um ensaio ultra específico para público treinado e de formação na área de Letras.
Como vou indicar isso para alguém, exceto para um pesquisador das duas ondas de pós-modernismo norte-americano?
Simples: não vou indicar.
Fique com os ensaios, eles são ótimos.
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