Cartas a possíveis amigos

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Consultório da loucura #3

antonioxerxenesky.substack.com

Consultório da loucura #3

Ainda respondendo perguntas de Instagram, agora refletindo sobre cor local, identidade & manuscritos enviados

Antônio Xerxenesky
Aug 25, 2022
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Decidi juntar várias perguntas que recebi no Instagram, pois me parecem tratar de temas correlatos, mesmo soando tão diferentes.

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P: Por que a literatura contemporânea brasileira é tão apegada ao realismo e formas menos experimentais? Medo?

P: Como foi a experiência de escrever um livro em que os personagens são estrangeiros em uma fase em que a literatura nacional está totalmente voltada para identidades nacionais?

P: O que há de tão fascinante na literatura de língua alemã?

Participei essa semana de um papo muito legal com Cristhiano Aguiar, autor de Gótico nordestino, uma antologia de contos insólitos que se passam ao redor de espaços que o autor habitou na juventude, principalmente na Paraíba e no Pernambuco. Nessa conversa, discutimos de diferentes maneiras a questão da representação de uma ““identidade nacional”” na literatura. Alguns assuntos que valem ser resgatados:

  • O livro teve imensa repercussão, antes mesmo de ser lançado, por prometer desde o título uma obra de gênero (o terror) situado em um território brasileiro conhecido pela diversidade cultural & religiosa pouco explorada. Há um público sedento por isso.

  • Alguns leitores cobraram de Cristhiano o fato de ser “pouco nordestino” - a Campina Grande do livro, afinal, tem shoppings e é tão esmagada pela ética/estética do capitalismo tardio quanto qualquer outra cidade brasileira. As personagens escutam Nirvana e outras bandas gringas e não apenas Geraldo Azevedo e Zé Ramalho.

  • Cristhiano esteve na lista da Granta de 2012; se fosse hoje, essa lista seria (ainda bem) muito diferente e muito mais diversa. Muito mais plural etnicamente, geograficamente e com maior paridade de gênero. O Brasil de 2012 não é o mesmo do Brasil de 2022. O de 2012 tinha aquele quê de “agora vai”, de “vamos vender nossa literatura já estabelecida e aprovada para o exterior”, e foi antes de todas as crises políticas que desencadearam inúmeros movimentos ativistas e também a ressurgência desse criptofascismo que engole boa parte do país.

(Na conversa, que realmente recomendo assistir, esses tópicos foram mais aprofundados)

Feita essa listagem, vamos lá:

O Brasil de hoje é um mundo à parte do Brasil de pouquíssimo tempo atrás. As redes sociais mudaram junto com os meios de divulgação de livros, o mercado editorial mudou e se abriu (é mais fácil do que nunca um autor novo publicar em grande editora), e diversas formas de ativismo (além do efeito cumulativo de política de cotas) impulsionaram grupos antes marginalizados a se expressarem artisticamente. E isso é ótimo. E livros excelentes têm surgido daí.

A questão é que, em um primeiro momento, novas vozes buscam dar conta de forma direta de suas experiências e vivências e por isso estamos tendo um grande influxo de livros de matriz autobiográfica etc. No entanto, logo em seguida passam a surgir também trabalhos em uma literatura não-realista - e já estamos vivendo isso. O mesmo movimento aconteceu em outros países (Marlon James escreveu o seu Game of Thrones africano LGBT, p. ex.) e já desembarcou no Brasil. Talvez tenha-se uma impressão de que estamos presos a um realismo muito quadrado e conservador ao observar as publicações das grandes editoras, mas saindo um pouco desse cercadinho, vemos que o afrofuturismo é a forma dominante da ficção científica brasileira atual, por exemplo.

Ou seja, é mais do que possível conjugar uma literatura “““engajada””” que trata de questões muito prementes no Brasil de hoje com uma forma experimental ou imersa em gêneros considerados menores (SF/F, terror etc.). E isso já ocorre com muita força - talvez só não seja aparente olhando os grandes grupos editoriais. Ainda assim, lá está o Samir Machado de Machado, um dos mais experimentais de agora, publicando em grandes espaços & sendo mui lido & discutido.

Dito isso, vamos complicar o tópico.

Será que não existe agora, de forma latente, uma cobrança para que todo romance lide diretamente com as questões mais importantes do Brasil atual? (vocês sabem quais são).

A segunda pergunta que separei acima questiona como foi, para mim, escrever um livro com personagens franceses e suíços nessa época complicada que vivemos. Bom, em primeiro lugar, quem leu Uma tristeza infinita e sabe somar 2+2 consegue enxergar que, na verdade, muito do que está sendo discutido ali no cantão de Vaud de 1953 é uma metáfora para o nosso Brasil brasileiro e bolsonaristeiro. Mas, mesmo se não fosse… Por que há essa cobrança de “cor local”?, o tal assunto que já atormentou até Machadão de Assis…

Não sou o único a fazer ficção brazuca situada alhures. A Noemi, no ótimo O que ela sussurra, vai falar da viúva de Ossip Mandelstam. Sei lá quantos livros do B Carvalho tem personagens estrangeiros em terras estrangeiras.

Alguém cobrou o Nobel JM Coetzee de desviar de encarar as agruras da vida sul-africana em 1994, quando lançou O mestre de Petesburgo, sobre a vida de Dostô? Alguém cobrou o outro Nobel, o nipo-britânico Kazuo Ishiguro, de ficar falando de robôs em tempos de Brexit?

Por que se cobra mais dos brasileiros? Nós estamos mais na merda que os sul-africanos ou os britânicos? (talvez)

Agora, vejam só o que Borges, que sofria o tempo todo essa cobrança de ser pouco argentino e escrever como um lorde inglês (apesar de ter tantos contos com gauchos e punhais), tem a dizer sobre o assunto:

Creio que Shakespeare se teria assombrado se tivessem dito que, como inglês, não tinha o direito de escrever Hamlet, de tema escandinavo, ou Macbeth, de tema escocês. O culto argentino da cor local é um recente culto europeu que os nacionalistas deveriam rejeitar por ser forâneo.
Encontrei dias atrás uma curiosa confirmação de que o verdadeiramente nativo costuma e pode prescindir da cor local; encontrei esta confirmação na História do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon. Gibbon observa que no Alcorão, livro árabe por excelência, não há camelos; creio que se houvesse alguma dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria essa ausência de camelos para provar que ele é árabe. Foi escrito por Maomé, e Maomé, como árabe, não tinha por que saber que os camelos eram especialmente árabes; para ele eram parte da realidade, não tinha por que distingui-los; em compensação, a primeira coisa que um falsário, um turista, um nacionalista árabe teriam feito seria povoar de camelos, de caravanas de camelos, cada página; mas Maomé, como árabe, estava tranquilo: sabia que podia ser árabe sem camelos. (“O escritor argentino e a tradição”, Obras Completas de Jorge Luis Borges.)

A cobrança de argentinidade de um argentino é algo… importado de europeus? E é possível ser árabe sem camelos! Nordestino sem _______ (insira aqui o estereótipo mais ligado à cultura nordestina)!

Também há um risco de transformar a cor local em exotismo. Um escritor latino-americano, cujo nome não lembro, mas que pertencia ao movimento McOndo (fusão entre Macondo e McDonald’s), reclamava da dificuldade de ter sua obra traduzida para o inglês, pois os americanos queriam uma literatura latino-americana com pobreza e porcos voadores, a conjugação única de populismo e fantástico maravilloso dos autores do boom como GGM etc.

O que nos leva, por fim, a uma questão inescapável, que é a questão da identidade. O que diabos significa ser brasileiro?

Aproximadamente 58 milhões de brasileiros votaram em você-sabe-quem no ano de 2018. Algo na figura do presidente captou muito a essência do que é ser brasileiro? A mamata, o pão com leite condensado, ficar na fila do banco do brasil de chinelos? Não sei o que é, mas se ser brasileiro é isso (tenham em mente algum hit do agronejo, o subgênero sertanejo que lauda o agronegócio), tô fora. Quem dera ser brasileiro fosse viver dentro de um disco dos Novos Baianos. Não é.

A questão da identidade é ultra super monstruosamente complexa para ser debatida a contento numa tímida newsletter que responde perguntas de Instagram. Mas identidades não são fixas; ser brasileiro não é apenas ter os direitos legais do Brasil; e talvez não exista uma essência do que é ser brasileiro.

O que nos leva à última pergunta. Eu tô sempre falando maravilhas da literatura em língua alemã e da lit húngara. Existe uma identidade húngara? Se existe, eu gosto dela? (Vale lembrar como Orbán é amado por lá).

A minha visão das literaturas estrangeiras talvez seja tão enviesada e torta quanto a dos alemães e húngaros em relação ao Brasil.

Eu diria que gosto da literatura alemã porque eles fundamentaram o movimento romântico, depois abraçaram radicalmente o iluminismo, e nessas tensões entre natureza e razão surge grande literatura - toda a obra do Musil está calcada nisso e, de certo modo, a de Benjamin também.

Mas o quanto essa visão é enviesada? Eu sequer falo alemão!

Mais uma vez, o tópico de como as identidades são construídas, modeladas e remodeladas, me interessa demais. Mas todos nós, de vez em quando, caímos na ilusão de uma essência, de uma unidade constituinte.

P: O que o uma submissão de original precisa ter para surpreender positivamente um editor, no caso de um escritor desconhecido?

A primeira coisa, eu diria, é enviar seu original para uma editora cujo eixo temático está alinhado com o que você quer publicar. Não adianta mandar sua space opera para a Companhia. Informe-se bem do catálogo da editora antes de sair mandando. Ah, e questão de etiqueta: jamais envie originais não-solicitados (descubra se a editora está recebendo etc.)

Como editor, acho importante ter uma sinopse forte apresentando o projeto para definir em que lugar da pilha de manuscritos vai entrar o livro. Frescor (para não usar a palavra problemática originalidade), para mim, é o ponto mais alto. “Caceta, esse livro parece diferente de todos os outros na pilha! Não é mais uma autoficção de um homem tristonho vendo a chuva cair pela janela!” Pessoalmente, também gosto quando o/a autor(a) menciona suas referências na apresentação, “com que tipo de literatura seu livro se parece”, digamos. É bom saber se a pessoa está escrevendo algo do time da Sally Rooney ou do László Krasznahorkai já de cara, para situar num mapa mental. Mas isso são opiniões pessoais e, no fundo, não sou eu quem toma a decisão final do que será publicado na editora onde trabalho.

Espero ter ajudado &

lamento de novo não ter respondido todo mundo (vai ficar para a próxima uma boa pergunta sobre lidar com autocrítica).

Cuidem-se.

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