Consultório da loucura #2
No qual o autor segue respondendo perguntas de Instagram e espera auxiliar aspirantes a escritores
— Nessa segunda news decidi focar em tópicos literários. Peço desculpas por não ter respondido questões mais pessoais.
P: Como superar o medo de escrever algo que você acha que só te interessaria/ que é muito específico a ponto de não ter público para isso/ que pode ser facilmente mal-interpretado e usado contra você mesmo e acabar perdendo muito tempo em um projeto que não têm futuro no mundo editorial?
Essa é uma boa pergunta, pois todo mundo que começa um projeto sabe que está se jogando no abismo sem ter certeza se o paraquedas funciona - até mesmo autores “estabelecidos” que publicam em grandes editoras.
Quando mandei as primeiras +-50 páginas de Uma tristeza infinita para a minha editora, Luara França, eu disse que não sabia se valia a pena publicar, que ninguém jamais ia ler um livro brasileiro situado na Suíça do pós-guerra, que isso não ia interessar a um só brasileiro que sofre com agruras muito diretas, por mais que o livro fosse metafórico dos tempos que vivemos e imagina um futuro pós-bolso etc. etc. etc. A Luara me mandou seguir em frente. Foi meu livro de maior sucesso (crítica e público) até agora. (o que não é muito difícil, claro, pois o patamar é baixo).
Não dá para prever o que os leitores vão achar. Nem se vão entender. Por mais que você estude e até ensine truques.
Eu costumo dizer aos meus alunos que o leitor não é tão inteligente quanto a gente gostaria, nem tão burro quanto alguns imaginam. Que o ideal é encontrar o caminho do meio. O autor estende a mão e o leitor precisa fazer a sua parte e estender a própria mão, e nesse aperto de mãos o sentido é construído. Mas a dosagem exata é muito, muito difícil. Publiquei um continho um tempo atrás, do qual gosto bastante, e no processo de edição cortei todo um parágrafo semididático que explicava a metáfora central, a instabilidade do conceito de identidade no mundo contemporâneo etc. “Está muito explicativo!”, ouvi e obedeci. Cortei. O leitor que resolva a equação. Resultado: quase ninguém entendeu onde eu quis chegar. Vida que segue.
Não foi a primeira vez; olhando as pauladas que levei em resenhas da Amazon, vejo que meu romance As perguntas sofreu do mesmo mal. “Final aberto”, “não resolve”, “livro inacabado”. Sim, a investigação toda do mistério da seita do livro é um grande McGuffin, nunca se resolveria, o que está em jogo é o arco da personagem do ceticismo para a dúvida, o livro se encerra em 24 horas abarcando essa jornada. Na minha cabeça, eu tinha escrito o romance mais redondinho de todos. A minha cabeça não é a cabeça do mundo.
Veja bem: não estou dizendo que eu sou um gênio e o resto do mundo é parvo. (está mais para o contrário).
Estou dizendo que não existem garantias. Nunca. Jamais.
Há imensas chances de todo o seu projeto mirabolante ser uma grande perda de tempo.
Dinheiro você não vai ganhar. Prêmios eu nunca ganhei, até conheço gente que ganha. Mas não dá para contar com isso. Não dá para contar com nada. Nem com o apoio da mãe (a minha, por sinal, odiou a primeira versão do Tristeza).
Então, como superar o medo? Fazendo terapia. (Zoeira, mas nem tanto: fiz décadas disso). Tem uma hora, no meio da escrita de ficção, que você nota que está dizendo algo relevante. Está comunicando algo que só pode ser comunicado através da linguagem opaca e ambígua da literatura, a mesma que abre todas as margens para a interpretação equivocada. Lá por 2013, no meio da escrita de F, eu me dei conta: sei lá quem vai se interessar por esse livro, mas dane-se, esse é o livro que eu quero escrever. (considero, por sinal, 2013 um ano muito importante para a minha vida; antes disso, nadava numa piscina de imaturidade e vaidade). No fundo, então, a resposta é: crie autoconfiança no que você deseja comunicar. Como fazer isso? Aí é com você.
P: Ao ler um livro contemporâneo, já teve o sentimento de ‘putz, que foda, nunca vou conseguir escrever'? Isso acontece comigo às vezes e me desmotiva. Queria conseguir aproveitar a leitura sem me comparar.
Sim, acontece com alguma frequência. Lendo Palimpsestos, da Elvira Vigna, tive isso. Lendo Bernardo Carvalho pela primeira vez.
Mas sabe o que ajuda? De verdade verdadeira? Ler livro ruim. Confere livros super elogiados, unanimidades, a nova promessa da literatura sudestina!! Tem cada bomba. Aí você pensa: poxa, melhor que isso até eu sei fazer. Essa alternância é saudável.
Tem um pequeno conto chassídico que diz (estou citando de cabeça) que uma pessoa deve sempre carregar dois recados no bolso. Quando você está se sentindo muito triste e deseperançoso, olha o bolso esquerdo e lê: “Lembre-se de que você foi criado à imagem de D’us”. Se você está sendo arrogante e se achando o bicho mais importante da Terra, olha o bolso direito e lê: “Do pó viemos e ao pó retornaremos”*.
Isso serve também para a escrita.
P: Que opinas do suposto impasse atual entre uma literatura mais engajada e outra mais estética?
Esse suposto impasse não é de hoje, já foi discutido na França do existencialismo, nos E.U.A. das lutas por direitos civis etc.
Eu acho que é ilusório. Um dos autores anglófonos mais engajados de todos, James Baldwin, foi também um dos maiores estilistas do século XX (na minha opinião, o maior, maior que Hemingway). Beloved, de Toni Morrison, é tão experimental quanto um Faulkner. Indo para territórios brasileiros, O avesso da pele tem uma narração complexa em segunda pessoa.
A mensagem política não precisa ser veiculada com literalidade. Como disse na carta anterior e repeti nessa e vou repetir de novo: linguagem literária é ambígua. Quer literalidade, vai fazer discurso num carro de som.
1984 é o livro favorito tanto de pessoas de esquerda como de direita. É a obra máxima dos criadores do terraplanismo contemporâneo.
P: Bons livros de terror e fantasia com tradução BR
Boa parte das coisas que venho indicando no meu Instagram não saíram no Brasil e provavelmente não vão sair tão cedo, mas acho que tem rolado uma boa safra editorial. Indico o tijolão de Mariana Enríquez, Nossa parte de noite, o volume de contos de Robert Aickman, Repique macabro, que saiu em capa dura agora, O grande deus Pã, de Arthur Machen, lançamento da Todavia…
Para variar, não vou conseguir responder tudo. Se você realmente quiser a resposta do que mandou, escreve por DM. Sigo meio afônico, então estou mais apto a digitar. :-)
Espero conseguir manter alguma regularidade de newsletters; se tudo der certo, quero expandir para ter uma opção paga e aí incluir posts como comentários à parashah da semana (estou esperando o reinício do ciclo), trechos inéditos de work-in-progress e comentários sobre processo criativo. A ver.
*A narrativa de criação do ser humano aparece duas vezes na Bíblia, primeiro como uma criação sagrada (à imagem do Criador), e depois como algo ordinário e material, o ser humano feito de terra, de pó.