Faz séculos (na verdade quase um ano, o último foi em dezembro/22) que não uso este espaço para responder a caixinha de perguntas no Instagram. Mas recebi um pedido querido para reavivar esse espaço e assim o fiz. A newsletter segue seu ritmo constante de dois posts por mês para assinantes pagos, sem contar o animado clube de leitura de não-ficção, mas a parte gratuita foi semiabandonada.
Então, cá estou eu, de consultório aberto para oferecer respostas malucas para perguntas sóbrias.
P: Como saber quanto tempo um livro vai levar para ser escrito?
É muito difícil prever, mas acho que depois de um tempo de estrada o autor sabe em quantas horas faz o percurso São Paulo - Araraquara, quantos quilômetros por litro o seu Palio faz com gasolina adulterada etc.
Por exemplo, Daniel Pellizzari lança um livro por década. Eu lanço um a cada quatro anos, com oscilações (desvio padrão: 1 ano).
O Ian McEwan lança um por ano, assim como o Philip Roth, quando estava vivo. Philip K. Dick notoriamente lançou 6 romances em um só ano, pois ganhava por livro e tinha muita pensão para pagar. Tomava toneladas de anfetamina. Estranhamente, são romances ótimos.
Quase nenhum brasileiro consegue ter esse tipo de produtividade de um por ano, pois quase nenhum de nós vive da escrita, todos temos empregos, filhos, frilas; só um herdeiro ou um aposentado conseguiria emplacar esse ritmo europeu/anglófono.
Da minha parte, sempre começa com uma ideia que parece ótima, depois descubro que é um lixo, aí pondero e consigo pensar uma maneira de salvar a ideia, e começo a escrever. Demoro para encontrar a voz certa do narrador, mudo entre 1a e 3a pessoa, vou, volto, monto uma lista de leituras de pesquisa, leio quinze livros sobre tópicos abstrusos, entro em crise depois de escrever 30 páginas, fico um ano lamentando que sou analfabeto, prometo nunca jamais escrever na vida, retomo o projeto, termino achando um lixo, mando para a editora, levantam minha bola, o livro chega no mundo, tem gente que adora, gente que odeia e xinga na amazon, gente que acha médio, digo a mim mesmo que esse é o último, fico um ano zonzo com eventos e entrevistas e sem conseguir pensar em escrever, volto a produzir no ano seguinte me sentindo absolutamente ridículo. Este ciclo tumultuado como uma pista de motocross tem a duração estimada de 1461 dias.
P: Um escritor estreante com um livro pronto. Como abordar uma editora? Quais outros meios de publicação?
Se tem algo que parece estar constantemente passando por revoluções mais rápidas do que qualquer pessoa consiga refletir e teorizar com calma é o processo de publicação no Brasil. Quando eu comecei, mal tinha surgido o Orkut. Como novos autores se divulgavam, conheciam editoras? Não se divulgavam, não conheciam editoras. O que eu fiz: fundei uma editora independente com amigos que sabiam tanto do mercado editorial quanto eu na época (= quase nada, demos um google em como solicitar isbn), imprimi o livro com grana do meu bolso (= bolso do meu pai, mas em minha defesa quitei a dívida um ano depois), botei caixas no porta-malas do Palio 96 AKA “Cerejão” e saí distribuindo para livrarias. Não existia e-books. Não existia self-publishing ou Print-on-demand. E não estamos falando de 1923, mas de 2008, meros 15 anos atrás. Desde então, tudo no mercado editorial desviou de rota 180 graus inúmeras vezes.
Mas uma coisa continua complicada: o autor que está fora do eixo RJ-SP ainda tem mais dificuldades. Todos sabemos que as editoras, grandes ou pequenas, recebem uma tonelada de originais para avaliar, muito mais texto do que pessoas aptas a avaliar. Inevitavelmente um livro que chega com uma recomendação forte de uma pessoa de confiança pula lugares na fila. Em editoras grandes, as agências literárias fazem esse papel — uma agente chega e diz: “olha, tem um original aqui desse fulano, é o primeiro dele, mas é fora de série”. Opa, temos que prestar atenção. Às vezes é um escritor: o livro chega com um blurb de uma pessoa muito fera e que não sai distribuindo elogios como se fosse sacolé de catuaba no carnaval de rua. Mais uma vez: indicações. Como se consegue essas indicações? Participando, de alguma forma, do meio literário, o que é mais difícil de fazer se você mora em um estado distante dos centros culturais sudestinos.
Pode soar corporativista, mas sempre defendi que as oficinas literárias, para além do que se aprende em sala de aula com o/a professor(a) e os colegas, é, acima de tudo, a criação de um espaço coletivo formado por novos autores, e que isso constrói uma rede de apoio e troca, além de costumar ser ministrado por uma pessoa que já está inserida no mercado editorial e que pode servir como olheiro (scout) de novos talentos. A pandemia foi ótima em digitalizar muitas oficinas, permitindo que gente de todo o Brasil (e alhures) faça o curso.
Como sou tiozão, não sou a pessoa mais adequada para falar de divulgação e redes, mas muitas pessoas também conseguiram perfurar bolhas produzindo e difundindo conteúdo literário por Instagram, TikTok etc.
Por fim, digo e repito: valorizem editoras independentes. Tem muitas excelentes atuando no Brasil hoje, com um trabalho sério, com editores rigorosos (como a DBA, onde trabalhei e agora é capitaneada pela Luiza Lewk; das outras não falo porque se eu esquecer de uma vou receber xingamentos). Conheça, se informe, descubra o eixo editorial de cada, entenda onde seu livro encaixa ou não encaixa, entre em contato com o/a editor.
Eu comecei com editora independente, e muita gente começou & continua em editora independente e é muito feliz nelas. A distribuição não é a mesma de um grande grupo, mas a democratização do acesso digital permitiu chegar a muitos cantos. O marketing é feito nas redes e ainda depende em grande parte da boa vontade do autor em se divulgar.
É só preciso tomar cuidado com editoras avarentas que lançam qualquer coisa sem edição ou revisão em troca do seu suado $$. Nesses casos, a autopublicação pode ser um caminho melhor. O serviço de print-on-demand melhorou muitíssimo de qualidade de impressão. Mas, no caso de autopublicação, vale pagar alguém para fazer uma leitura crítica, que acaba atuando como uma espécie de edição extracurricular, além de revisor etc. E, com o livro em mãos (e nas caixas), mandar por conta própria para autores que admira, booktubers, bookstagrammers, etc. Não há vergonha nenhuma em autopublicar seu primeiro livro (Areia nos dentes, meu primeiro romance, foi uma espécie de autopublicação, e graças a ele consegui uma resenha aqui e outra ali, e outra e outra, e a Rocco prestou atenção no meu livro e relançou-o dois anos depois com distribuição nacional forte etc.)
P: Thomas Bernhard, o que ler?
Tudo.
Brincadeira (mas nem tanto). Bernhard é um dos autores que mais se repete, de certa forma está sempre escrevendo o mesmo livro, seja em contos, teatro ou romance, mas todos parecem valer a pena pois ler Bernhard é desenvolver uma adição. Em geral, indico começar por algum livro da trilogia das artes: O náufrago (música) ou Derrubar árvores (teatro). São breves e resumem o que há de mais atraente no autor, a diatribe em espiral, i.e., que retorna sempre ao mesmo ponto, obsessivamente, mas cada vez numa altura diferente. Ele criou um estilo próprio muito apto a ser imitado, algo que grandes artistas fizeram, como Castellanos Moya e William Gaddis (“Agape agape”).
Em 2013, dez anos atrás, dei um curso sobre o autor e produzi um texto a partir das reflexões derivadas do curso. Que eu lembre, ainda gosto do texto (não vou reler) e trata justamente dessa questão de um autor que costuma se repetir, mas que a cada diferença parece justificar sua existência. Recentemente, a UFPR e a Temporal publicaram peças de Bernhard. Recomendo sobremaneira a selvagem e delirante Uma festa para Boris, com orelha minha. Bernhard se via mais como um dramaturgo do que como um romancista, mas suas peças ainda são menos lidas do que os romances aqui em terra brasileira.
O argentino Cesar Aira consegue escrever numa média de 3 a 4 livros por ano. O segredo tá no gênero: novelas.
Adorei saber da sua pista de motocross hahaha