Cartas a possíveis amigos

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Consultório da loucura #1

antonioxerxenesky.substack.com

Consultório da loucura #1

No qual o autor leva a caixinha de perguntas do Instagram para o formato longo da newsletter

Antônio Xerxenesky
Aug 5, 2022
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Consultório da loucura #1

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Olá,

esta é a minha tentativa 2022 de ressuscitar a newsletter & evadir o algoritmo que levou todas redes sociais a empurrarem vídeos de dancinha apontando para textos flutuantes.

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Costumo abrir caixinhas de perguntas no Instagram e respondo 1/3 do que chega lá com sinceridade, ocasional sarcasmo & listas estapafúrdias. Uma hora encho o saco e deixo as perguntas se perderem no limbo. No entanto, algumas perguntas mais vagas acabo não respondendo pois o espaço necessário seria maior do que um story. Então, cá estamos. Separei algumas (escondendo o nome de quem perguntou):

P: Como conciliar a vida de proletário com a escrita?

Bom, em primeiro lugar, meu estilo de vida burguês de morador do centro expandido de SP ofenderia qualquer proletário, mas indo para a raiz da pergunta: como escrever ficção quando se passa tanto tempo trabalhando?

Esta é a rotina de Mark Twain: acordar de manhã e tomar um café-da-manhã caprichado, entrar no escritório e ficar até a hora de jantar, pelas 17h, pulando o almoço. Não era interrompido.

Mark Twain cuidava dos próprios filhos? Cozinhava o próprio jantar?

Esta é a rotina de Stephen King: acorda cedo, toma café e vitaminas, senta e escreve até o começo da tarde, almoça, tira uma soneca, vê TV, responde e-mails.

Faz tempo que o Stephen não é CLT, acho.

—

70% das minhas falas públicas tem como pergunta ao final: “qual é sua rotina de trabalho?”

A minha varia (só trabalho presencial na editora terças e quintas), mas em geral envolve:

  • acordar às 7h e preparar tudo pra escolinha do Samuca, que eu ou Gabi levamos.

  • de volta em casa, responder e-mails, começar a trabalhar (não chamo escrever ficção de trabalho). às vezes, dou aula particular de manhã. às vezes, vou ao supermercado.

  • preparar o almoço, buscar Samuca (ou Gabi), dar almoço à fera

  • à tarde, trabalhar p/ editora, traduzir?, dar aulas particulares?

  • cuidar minimamente da casa no meio disso

  • algumas noites, dou oficina de escrita ou curso de algum dos tópicos que dou cursos (Pynchon, Bolaño, Benjamin…); outras, faço Sam dormir.

Se tudo der certo e Samuca estiver dormindo 21h30, aí sim tenho tempo livre! Viva! Posso: assistir Netflix, conversar com minha esposa, jogar videogame, ler livros por prazer, ou o que mais faço, preparar o trabalho do dia seguinte (mentorias etc.).

Mas Antônio, e a escrita?

Meu amigo, você viu o preço do aluguel de um apê em Santa Cecília?

Não me entendam errado: eu realmente, realmente não posso reclamar. Pela primeira vez em 37 anos só estou trabalhando com coisas de que gosto (ghostwriting de youtuber nunca mais). Tenho emprego fixo em uma editora pequena e faço 250 frilas (orelhas não assinadas, traduções, mentorias individuais etc.) para fechar o orçamento. Não me falta trampo de Uber das letras.

Consigo pagar minhas contas (e sou ninja de gerenciar dois cheques especiais). Não tenho bens, não poupo dinheiro (não sobra no fim do mês), mas meu filho frequenta escolinha particular e temos babá no turno da tarde para poder trabalhar. Minha situação não é diferente da de nenhum pai de classe média paulistana. Ela diverge, por um lado, de herdeiros (que possuem tempo livre para as artes) e, por outro, de pessoas que não tiveram os mesmos mil privilégios que eu (branco, filho de pais intelectuais) e para quem a escrita de ficção é ainda muito mais complicada.

Só umas 3-4 pessoas no Brasil devem estar ganhando o suficiente com escrita a ponto de se darem o luxo de ter uma rotina de escrita muito diferente da minha, gente que emplaca best-sellers (Itamar, Bei, R Montes). Para quem não vende (98% da literatura BR), a vida é assim, e a escrita se torna o hobby que se faz aos domingos quando o filho magicamente dorme à tarde. Ou de madrugada.

Em 2022, cavei 97 horas para jogar Elden Ring. (não me orgulho). Joguei, sempre, entre 00h e 02h. Eu poderia estar escrevendo. Mas eu estava perdendo meu tempo com mais um instrumento de sadismo da FromSoft. A culpa é minha.

Claro, às vezes estou cansado de ter passado o dia inteiro trabalhando com literatura (avaliando contos de oficina, traduzindo, editando, avaliando títulos inéditos) e não tenho cabeça para sentar e lidar com mais palavras e mais ficção. Prefiro apanhar para monstros no PS5 tomando uma cerveja.

Mas não trocaria isso por um emprego enfadonho e sem a menor relação com a cultura.

Sinto inveja do Stephen King? Sim. Vida que segue.

P: Escreve mais quando está triste, eufórico, sem ou com esperança, apenas com tempo?

R: Bom, depreende-se pela resposta anterior que é quando sobra tempo. Mas ainda tem isso: você precisa estar com a cabeça no lugar certo para escrever. E nem sempre isso coincide com o horário das sonecas do filho. O que aprendi na vida, e isso posso compartilhar como dica, é tentar passar o tempo pensando no que você vai escrever. Está mastigando uma vagem? Pensa no romance. Banho? Pensa no romance. Deitado na cama antes de dormir? Pensa no romance. Dorme pensando no romance pois vai que o sonho traz alguma pista útil. Aí, na hora de sentar para escrever, você consegue recuperar aquele estado de humor passado.

P: Ler ficção como se tratasse de fatos reais (achar que o narrador é o autor) é um problema?

R: Creio que sim, mas só vejo leitores novos, sem muita bagagem, fazendo esses silogismos bobos. É o problema de colocar personagens que são más pessoas e não dar uma lição neles. “Ah, não acredito que o personagem racista sobreviveu no fim e ainda ganhou uma promoção no trabalho!” Esse tipo de cobrança é mais feita em livros juvenis do que para adultos, de onde se espera literalidade e didatismo. Na vida real, até Satã se elege presidente com o marketing certo (até porque, vale lembrar, se aparecer alguém vendendo racismo, sempre terá quem compre).

Do meu canto, acredito que personagens heróis puros não sustentam um romance. Todos os meus protagonistas são cheios de defeitos, são vaidosos, arrogantes, quando não estou falando de uma assassina apolítica que é um ser monstruoso (olá, Ana do F). E eu tenho quilos de defeitos (não os mesmos dos meus protagonistas), e vocês provavelmente também. Não dá para imaginar uma ficção adulta purificada com cloro.

P: Todo mundo precisa ter o que dizer?

Outro mal da rede social: a pressão por “produzir conteúdo”, ter opinião sobre todos os assuntos, ter o que dizer sempre. Muitas vezes não tenho nada a adicionar ao tópico da ordre du jour além da minha raiva e fico em silêncio.

Para escrever ficção, a história é outra. Não há inferno maior do que ler um livro que parece um exercício de estilo, feito para mostrar como o autor é inteligente.

Não que a boa ficção ofereça respostas, “comunique” algo, transmita uma mensagem. A boa ficção, a meu ver, tem sim o que dizer, mas o conteúdo só pode ser veiculado através da linguagem literária (opaca, movediça, ambígua) e se manifesta em possíveis perguntas, por mais descabidas que pareçam.

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