Decidi mandar essa news para todos os leitores, e não apenas para o grupo de assinantes pagos. Motivo: não sei. Cogite assinar $ e sustentar esse projeto.
ANTES DE MAIS NADA,
o clube de leitura para discutir Dysphoria Mundi, de Paul Preciado, será dia 27/03, quarta-feira, 19h. Em breve mando o link. O livro é imenso e eu mesmo não comecei a ler ainda, então bora se jogar. Pode participar mesmo sem ter lido inteiro.
Ah, e por votação ao vivo, definimos que o seguinte será MANIAC, de Benjamin Labatut.
Agora, para a programação normal, na qual respondo a perguntas que chegam (mandem perguntas), pois estas perguntas são muito melhores do que as pautas do momento ou de comentar os filmes do Oscar (sim, Anatomia de uma queda é o melhor dos que eu vi).
P: Já aconteceu um livro ou texto seu ser mal interpretado, mesmo que por leitores super bem intencionados? Estou pensando naquele leitor que diz: "adorei aquele seu livro, ele confirmou a minha ideia X" (quando você queria dizer o oposto de X naquele livro). Tenho um certo pavor disso, pois já vi indícios disso com textos que publiquei na área académica.
O que leva à pergunta contrária: você já encontrou leitores que entenderam super bem tudo o que você quis dizer num livro? Encontrar esses leitores é a festa de arco-íris ao fundo e pássaros cantando e cheiro de grama cortada que eu imagino? :)
Leitores, não estranhem a pontuação incomum, a mensagem chegou direto de Portugal.
Querida perguntadora,
você provavelmente sabe disso, mas acho o exemplo a seguir paradigmático. Quando os Manson invadiram a casa de Sharon Tate e esfaquearam brutalmente a atriz gravidíssima e todas as pessoas ali presentes, foi escrito com sangue na parede o título de uma música:
Apesar do erro de grafia (não dá para cobrar alfabetização no meio de um frenesi homicida), a referência, depois explicitada por Charles Manson, era à música dos Beatles. Que, na opinião de Manson, era um convite para iniciar a “guerra racial”.
Agora cabe a pergunta:
era isso que Paul McCartney quis dizer quando compôs a sua canção?
Não temos acesso ao inconsciente de Paul, mas podemos supor que não. Pode não ser a música mais alegre e jovial dos Beatles, mas com certeza a banda não estava incentivando homicídio em massa.
Charles Manson era um “leitor” super bem intencionado: ele era fã dos Beatles! Como bom fã, ele se esforçou para decifrar os significados ocultos… e errou, talvez, na interpretação da obra.
Foi em um livro do crítico de música Alex Ross que primeiro vi esse exemplo, e ele defendeu uma opinião controversa, que hoje me parece ser ainda mais controversa, de que a música não é a melhor maneira de transmitir uma mensagem política.
Claro, podemos pensar em exemplos contrários, positivos, “Strange fruit”, de Billie Holiday, denúncia ao racismo que provocou impactos no mundo real, curiosamente composta por um poeta judeu bastante desconhecido sobre os linchamentos de negros que ele testemunhara etc.
Tudo isso para dizer que:
toda arte que vale a pena — seja música ou literatura — tem uma imensa parcela de ambiguidade. Se é direta ao ponto, transparente, poderia muito bem ser um post de facebook. E, sendo ambígua, está fadada a ser mal interpretada. Muitas vezes pelo bem.
“Patriotismo”, de Yukio Mishima, um conto brilhante, absurdamente brilhante, recomendadíssimo a qualquer ser humano capaz de ler livros, antecipa na ficção algo que o Mishima faria logo depois, na vida real.
Fascista do mais alto grau, ele invadiu uma base militar para tentar derrubar a constituição democrática. Após o fracasso, cometeu seppuku e foi decapitado por um amigo, completando o suicídio ritual. Tudo isso está no conto “Patriotismo” — que, por si só, não é fascista; pelo contrário, parece um alerta aos perigos do fanatismo político. A má interpretação é o melhor que podemos oferecer a Mishima — que, repito, é um dos maiores gênios da literatura japonesa.
—
Dito tudo isso:
sim, um número imenso de leitores interpretou mal a minha obra, com boas ou más intenções. De vez em quando leio resenhas na Amazon só para rir. Uma tristeza infinita foi lido como romance histórico, mesmo tendo falsificado tantas datas e provocado encontros impossíveis entre figuras reais. As perguntas é o rei das interpretações equivocadas, especialmente de quem esperava um terror tradicional.
Mas o caso contrário, como você apontou, também ocorreu. Uma psicanalista, Josiane Orvatich, entendeu algo que nem mesmo eu tinha entendido no meu livro. Uma tristeza tem capítulos numerados em ordem, mas dois capítulos, de flashback, não tem números, mas títulos (“Uma tristeza mais antiga…” etc.). Ela entendeu aquilo não como apenas sinalizações de não-linearidade, mas como as duas origens dos traumas que persistiam no personagem, mesmo com a passagem do tempo. São persistências, “fantasma que ainda precisam ser enfrentados e compreendidos”. Um atravessamento*. Sou grato a ela pela leitura.
—
*- Desde que ela apontou isso, minha cabeça se voltou para a arquitetura de Daniel Libeskind,
cujo projeto do Museu Judaico em Berlim, que visitei em 2013 com minha amiga Natalia K., que morreria no ano seguinte de forma inimaginável e repentina, é um ziguezague atravessado (cinza escuro na imagem acima) por um trauma inescapável, a Shoá.
Que curioso esse erro ortográfico do Manson, não sabia disso. Ficou próximo de "healer", quase dá pra ler "curandeiro desequilibrado", (um ato falho?). Essa escrita desviada parece ser uma extensão da leitura distorcida que ele fez da música.